O luto de Alan Sparhawk e o esqueleto musical de Lambchop no Misty Fest
Quando nos deslocámos ao Centro Cultural de Belém para mais uma noite de concertos duplos do Misty Fest, sabíamos bem quem íamos ver, mas não propriamente como os veríamos. Tendo sido anunciados como espectáculos diferentes do normal — Lambchop encontra-se numa digressão intimista de concertos acompanhados apenas por piano, enquanto Alan Sparhawk, a metade sobrevivente dos Low, prometeu apenas tocar canções novas, decidindo não revisitar a obra do duo forçosamente desmantelado cedo demais, após a prematura morte de Mimi Parker, sua parceira criativa e de vida, em Novembro do ano passado. A noite foi um completo vergar de expectativas do público, acostumado à obra de cada um dos artistas.
A única coisa que imaginávamos do concerto de Alan Sparhawk é que o fantasma de Mimi estaria sempre presente. Apenas não sabíamos se seria endereçado indirectamente ou enfrentado de frente pelo artista. A resposta veio logo na segunda canção, que se seguiu a uma introdução de rock quase dançável, com um groove incomum na discografia dos Low. “When you flew out the window and into the sunset / I thought I’d never stop screaming”, cantou Alan em “Screaming Song”, no timbre permanentemente enlutado que caracteriza a sua voz, dirigindo-se a Mimi pelo seu nome mais à frente na canção, que terminou com um clímax de rock ruidoso, numa libertação de tensão directa e necessária.
Se, ao longo da extensa discografia dos Low, a banda explorou a ideia de criar tensão através de instrumentação esparsa e letras sombrias para depois nunca a libertar, o luto de Alan Sparhawk provocou uma reacção mais crua na sua música. Por entre rock distorcido e blues emotivos, reminiscentes do Midwest ao qual Alan chama casa, o concerto foi uma exploração das diferentes formas que o luto pode tomar. O artista mostrou-nos as suas feridas, mais ou menos saradas, esgravatando onde sentia que tinha de o fazer para que pudéssemos imaginar a sua dor.
Mas nem tudo foi desolação. A esperança também fez as suas necessárias e aliviantes aparições. Começou logo por tomar forma na presença de Cyrus Sparhawk, filho de Alan e Mimi, na banda que acompanhava o seu pai. Cyrus, envergando um casaco de capuz com a imagem de Double Negative, álbum dos Low lançado em 2018 e que foi como um maravilhoso terramoto musical, administrou o baixo e sugeriu um futuro no universo familiar dos Low. Além disso, canções como “Don’t Take Your Light Out of Me” sugeriram um tom mais resiliente e esperançoso nesta nova fase musical de Alan Sparhawk.
A certa altura, Alan conta-nos que passou pela praia antes deste concerto. O largo oceano lembrou-o do grande lago Superior que banha a sua cidade de Duluth, o maior lago de água doce do mundo e que “parece infinito”. Como um pensamento fugaz, diz-nos “é bom sentir que algo é infinito”. Já perto do final do concerto, apresenta-nos “Not Broken”, uma canção incompleta dos Low, escrita já perto do final da vida de Mimi. O vislumbre de um futuro que não chegará a existir, ao invés de nos entristecer, trouxe-nos conforto. É que há coisas que não são infinitas, mas o impacto dos Low e da sua obra em nós é algo que nunca deixará de existir.
Quinze minutos depois, Kurt Wagner, mais conhecido como fundador e génio criativo dos Lambchop, já se serpenteava em palco ao som de um grandioso piano de cauda tocado por Andrew Broder, colaborador do projecto nos seus mais recentes álbuns, Showtunes e The Bible. Movendo as mãos como um maestro carismático e pisoteando o chão à volta do foco que iluminava o microfone do qual se aproximaria em breve, parecia contente com simplesmente desfrutar dos arranjos sumptuosos e esparsos que Broder interpretava.
Eventualmente revelou a sua voz grossa e ponderada, soando como um Bill Callahan mais maleável. Despida dos efeitos e vocoder que caracterizam grande parte dos seus últimos discos — sequência iniciada em FLOTUS, belíssimo álbum de 2016 — a voz de Wagner deu destaque à sua escrita observacional e aos seus trejeitos de cantar, captados pelo microfone apurado como se de uma gravação ASMR se tratasse. A performance de pouco mais de uma hora foi assim, uma redução das intrincadas canções dos Lambchop ao seu esqueleto. Até o design de palco espelhava isso, com os focos de luz estáticos a apontar para os dois artistas em palco, desenhando caminhos rectos no ar como se de espinhas amareladas se tratassem.
A primeira meia hora passou-se sem pausas, sendo cada canção pautada por subtis mudanças de tom do piano e pelo virar das páginas das pautas musicais de Broder. Passámos por canções como “Daisy”, “So There” e até uma interpolação de “Once in a Lifetime”, dos Talking Heads. Os silêncios deixados pelo delicado piano eram preenchidos pelo ranger das cadeiras do auditório ou acidentais estalidos do público, como se nós próprios fizéssemos parte da composição. Considerando o formato, a envolvência do espectáculo foi impressionante, tendo sido claramente auxiliado pelo carisma e teatralidade de Kurt Wagner.
À medida que o concerto avançava, as canções foram-se tornando um pouco mais cheias e a voz de Wagner mais semelhante à de um crooner dos anos 50. No entanto, o que nunca se perdeu foi a leveza da sua atitude em palco, sempre humorística, particularmente no meta-piscar de olhos à sua obra que foi a versão de “Listening (to Lambchop by myself again)”, de Sun June.
O final foi reservado para duas canções de amor: a primeira delas foi à música em si (“That’s Music”), enquanto que a segunda veio já como encore. A versão ao piano de “Theöne” foi tão bela que levou o próprio Kurt às lágrimas, delicadamente secas com um lenço de bolso. Foi um final sublime para uma noite dedicada ao poder transformativo da música.