“O Medo”, de Al Berto: deslocação, fragmentação e fluxo
Erotismo. Se perguntarem aos demais do mundo literário e académico, o poeta sineense Alberto Raposo Pidwell Tavares, mormente conhecido pelo seu nome golpeado de Al Berto, acaba sempre descrito como um boémio cuja linguagem desagua sempre no corpo e na sexualidade. Ora, acolher tais raciocínios é permitir a formação de um pressuposto mental que nos impactará aquando da leitura da sua obra. Em rigor, a sua escrita é um rasgo de modernidade. Numa tentativa de se imiscuir, de reconhecer os limites palpáveis e as barreiras indecifráveis do corpo, de penetrar os mais ínfimos recantos da memória e de ver no horizonte de fim de tarde o seu sol em brasa ténue, Al Berto escreve. E será uma curiosa experiência o leitor acompanhar o pendor gradativo da sua obra: por estar cronologicamente catalogado, “O Medo”, um corpo antológico editado no ano de 1987 (com as suas revisões e aumentos, não obstante da morte do poeta no fatídico 13 de junho de 1997), permite-nos ter a visão de um ângulo raso, amplo e magistral. O menino retornado da Bélgica — dos seus estudos de Belas-Artes —, no que concerne em matéria poética, vai-se metamorfoseando incessantemente até ao seu último suspiro de vida (artística).
Nos inícios — um Al Berto jovem, portanto —, apercebemo-nos de uma escrita convulsa, sedenta de imagens na vertente profundamente sexual, apreciadora das noites barulhentas das cidades e dos letreiros compostos de néon, com a alegria de ter chegado ao sítio que lhe foi mais marcante, Sines, porém ansioso com a desaceleração da jactância do seu corpo, impulsionando-o sempre a partir, a fazer uso do espírito errante e deslocar-se — e não interessa o porquê e para onde, o essencial é ir. Ir, partir, fugir, tudo verbos com as suas significações, mas tão próximos no dicionário particular da poética de Al Berto. O próprio exercício da escrita é contemplado como “(…) o despertar do corpo, suas pulsações bruscas, fragmentadas (…)” e todo o ato literário está lhe maquinalmente ligado aos sentimentos: ou seja, a caneta escreve através de um veículo sentimental, despreocupado das pretensões intelectuais, e somente procurando traduzir, expelir, o que vai no âmago da essência que está escrevendo; fica esclarecido, então, o facto do verso ou prosa adquirir, por vezes, tamanha lonjura — sendo a escrita um fluxo sentimental, os sentimentos têm de ser expostos como são, isto é, sintetizados ou escrupulosos.
Numa segunda instância — a qual percebo consolidada com “Regresso às histórias simples” [in “Uma existência de papel”] —, a sua alma vai-se conformando com a incapacidade de sozinho fazer face aos padrões impostos pelo mundo e pela ainda muito fechada sociedade portuguesa do pós revolução: por isso, estabilidade, silêncio, fuga onírica ao invés de física, tornam-se pilares da sua arte. Mas não termina por aqui. “Poeira de Lume”, seu décimo quinto livro, em que “Horto de Incêndio” está bem presente nos meandros da sua textualidade, converge num sentido último do abnegacionismo. A imagética recorrente do fogo, da chama, do incêndio que devem levar alma e corpo à combustão, transforma-se num lume brando, numa espécie de “adeus”, em que os últimos despojos vão lentamente sendo consumidos: “depois/ talvez se ouça o canto quase límpido/ do mundo — cinzas onde mergulho/ para abrir o tempo e visitar tuas mãos/ que a lucidez do amor escureceu” (“Visitatione”, pág.658). O poeta descobre na solidão, também, um gigante espaço de reflexão, abraça-o por completo, ora nos seus passeios, ora em casa, alucinando com a entrada do mar pelas janelas, coisa impossível em momentos anteriores, fruto da faceta ultra-socializante que só via nobreza no convívio dos “primus inter pares”, belissimamente dito em “Vestígios” [in “Horto de Incêndio”]: “noutros tempos/ quando acreditávamos na existência da lua/ foi-nos possível escrever poemas e/ envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído/ pelas salivas proibidas (…)”.
O novo alinhamento da sua personalidade, verdade seja dita, não é necessariamente antitético ao que foi. Traços antigos continuam a fazer parte da última prosa e poesia, ainda que a aprendizagem de Al Berto o tenha levado num caminho estético de autossuficiência, onde mesmo os olhos — órgão tão imperioso aos artistas — são apenas uma substância para a poesia e não um bem necessário: “é para lá dos teus olhos fechados que o mundo acorda. mundo que ainda não sabes descrever.” [in “Luminoso Afogado”]. Contudo, Al Berto sabe descrever o mundo: o mundo do delírio, das chuvas noturnas, da prostituição, do vazio espiritual, dos amores trágicos: o poeta reúne um estilo de amálgama, tentado fazer caber nele todos os vértices do tempo em que habitou.
Compreende-se, creio, que junto da etiqueta do erotismo e boémia, ontologia e metafísica podem ser-lhe adicionados. Al Berto não se prende a uma só categoria e muito menos ao corriqueiro que pode haver nelas, antes ele comunga com os sentidos latos e intangíveis, o que, inevitavelmente, para todos os poetas e pensadores, se traduz em fascínio pela imensidão e angústia de não se conseguir agarrar tudo.
Este poeta sineense revela-se um dandy da poesia — munido do seu casaco de fato, mas com a camisa propositada e elegantemente desapertada, Al Berto ocupa dignamente o seu lugar no mundo literário português.
Para a redação deste artigo foi usado o livro “O Medo”, da Edição Assírio & Alvim, reimpressão de 2020. Este texto foi originalmente publicado na revista Devaneio, tendo sido aqui divulgado com a devida autorização do autor.