O ofício de puxar os dias

por Cláudia Lucas Chéu,    29 Setembro, 2023
O ofício de puxar os dias
Cláudia Lucas Chéu / Fotografia de Vitorino Coragem
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Nunca vi o meu pai senão de mangas arregaçadas perante o ofício de puxar os dias, quilómetro após quilómetro, pela estrada que constituiu literalmente o percurso da sua existência. Viajar com o meu pai no camião que nos conduzia ao estrangeiro há-de ser sempre a mais perfeita metáfora da minha vida.

Inúmeras foram as viagens que partilhámos pela Europa, que me parecia um novo mundo onde se falavam outras línguas que eu não podia entender, apesar de querer muito e por isso espanholar quando passava a fronteira, atrevendo-me a perguntar nas estações de serviço onde ficava «la casia di banhio». Não tinha a graça que lhe acho agora porque ninguém parecia entender um castelhano que eu considerava perceptível, e eu tinha de pedir ao pai para explicar aos estrangeiros que estava aflitinha, fosse em português ou em estrangeiro eu tinha de encontrar um sítio onde aliviar a bexiga.

Inúmeras foram também as vezes que, à falta de uma estação de serviço, nos abeirámos na estrada e me aventurei mato adentro, porque aquilo que é animalesco não pode esperar pela civilização. A verdade é que na Bélgica, na Alemanha e na França, o meu pai sabia tanto de línguas como eu e por isso recordo e lhe gabo as capacidades de mimetização, fosse de mapa em riste à procura do sítio onde pousar a carga do camião ou de um bom restaurante onde calássemos a larica, que se manifestava mais ou menos às mesmas horas.

Nunca vi o meu pai cruzar os braços perante um problema, fosse a falta de dinheiro ou a tristeza irremediável da mãe. Dá-me ideia que nasceu de mangas arregaçadas e que já vinha disposto a resolver chatices desde o primeiro e único biberão partido. O meu pai, que gostava de me morder os braços e de me fazer cócegas, que conduzia de tronco nu com o suor a escorrer-lhe pelo peito, que punha cassetes do Totto Cutugno a tocar aos berros no camião para que eu pudesse fazer o meu número de cantora no retrovisor enorme do camião. O meu pai, que, depois de uma travagem brusca que me fez bater com o nariz no botão do rádio do camião e jorrar sangue por toda a cabine, me levou ao colo até ao lugar mais próximo para pedir ajuda. Ainda hoje consigo ver essa cicatriz na aba esquerda do nariz, que já era grande na altura. Ele que esteve ausente durante grande parte da minha infância porque foi ganhar a vida para nós todos, eu, a mãe e a minha irmã, e até a ração da cadela rafeira foi paga com o único salário que entrava invariavelmente todos os meses na nossa casa.

Ele foi ganhar a vida para nós porque nunca pensou em perdê-la; perder foi sempre um verbo que conjugou só para si próprio nos calabouços de uma solidão que sonho, mas nem sequer imagino. Ele que deixava o salário inteirinho para nós, a nossa família, ele que ia vivendo e sobrevivendo na lata do camião, ao frio e à chuva, ao calor e à insónia, com conservas, pão e fruta, e que para si sempre foi o que fosse barato, porque o bom e dispendioso era para nós e em épocas especiais.

Vejo-o hoje na mesma labuta, sem dar sinais de um calcanhar de Aquiles, mas com as pálpebras a acusar um cansaço que o corpo não pode esconder. O meu pai, que sabe melhor do que eu que a vida pode ser mãe mas às vezes é uma madrasta das más, e mesmo assim não perdeu o interesse ou o encanto por esta coisa de estar vivo. Apenas abafou os seus sonhos em troca de os fazer acontecer para os outros; continua de mangas arregaçadas todos os dias. 

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