“O Próprio”, de Dillaz, é um álbum fiel ao seu autor
Apesar de vivermos num mundo que se crê cada vez mais polarizado, há uma coisa com a qual todos podem concordar: Dillaz já deixou (e continua a deixar) a sua marca no hip hop português. Há mais de uma década que André Neto tem provado o seu valor na arte das rimas e dos instrumentais, mostrando a sua poesia de múltiplas formas, seja com barras dilacerantes que queimam haters, versos emocionais, sentidos e introspectivos, ou refrões de celebração que aproveitam aquilo que as suas habilidades com a caneta e por trás da mesa de produção lhe trouxeram. O talento do rapper da Madorna está lá e os números não enganam: conta com mais de 300 mil subscritores só no seu canal de YouTube, e os videoclipes dos singles que lança estão frequentemente nas tendências portuguesas de música desta plataforma, fruto de uma audiência fervorosa que o tem apoiado desde os tempos das mixtapes Sagrada Família.
Em 2016, surge o seu primeiro álbum: Reflexo foi totalmente produzido por Dillaz e introduziu-o oficialmente ao mundo com pujança e critério pela mão de temas como “Saudade”, “Protagonista”, “Sonhar Nesta Vida” ou a incontornável “Mo Boy”. Seis anos depois, ouvimos em Oitavo Céu o aprimorar da produção de Dillaz mas também o explorar de novas sonoridades como o trap e o drill, e algumas colaborações com músicos e produtores que o ajudam a construir a sua marca sonora. Temas como “Conto”, “Mango”, “Avioneta” ou “Papaia” são alguns dos destaques do segundo álbum de Dillaz que demonstram a expansão da sua música, adaptável às novas tendências sem perder a essência daquilo que a torna especial. Mas se o mote de Oitavo Céu era a exploração, em O Próprio trata-se mais de consolidação.
Somos muito bem recebidos no terceiro álbum de Dillaz por “Gangsta”, com um beat incrivelmente simples e a cara chapada de quem por cima dele discorre, com bons jogos de palavras que declaram orgulhosamente que aqui encontraremos “mais do mesmo”, introduzindo-nos de forma adequada a mais um capítulo desta história musical. Segue-se “Agiota”, que afasta a calmaria do tema anterior com cordas prestes a estalar do instrumento, num beat tenso e animalesco acompanhado por palavras ameaçadoras. “O Próprio” mostra-nos os dotes de storytelling e observador nato de Dillaz, terminando de forma potente esta tríade inicial. São facetas que já conhecemos, mas ouvimo-las mais focadas, com mais atenção ao detalhe e à sintonia entre batida e letra.
Mas não só de frases combativas e observações sisudas se faz o catálogo de Dillaz. A música “Vivo” mostra-se mais recatada com a sua poesia introspectiva e um optimismo disfarçado num registo mais acústico. As cordas — e especialmente a guitarra — são um som fulcral na carreira de Dillaz, como “Colãs” tão bem demonstra. O primeiro single do álbum é uma versão portuguesa de uma bachata, com uma guitarra a rasgar que simboliza o relato que se desenrola ao longo da música sobre seguir em frente sem esquecer o passado.
“Nota 100” — em que Dillaz e Julinho Ksd discursam sobre um tópico fogoso num tema que é mais fogo de vista — e “Alô” descrevem personagens em busca do amor. Este último tema, com Dillaz e Plutónio, junta um convite galante a um doce dedilhar de acordes com os dois rappers a mostrarem o seu charme e timbre sedutor em versos quentes de apreço e cortejo. Do lado oposto, “Pé no Mar” é uma dolorosa despedida em que Dillaz esconde a dor atrás de um intenso uso de autotune na sua voz. A utilização desta ferramenta vocal não é algo novo para Dillaz, mas é a primeira vez que a usa de forma tão diligente, estando presente em grande parte das músicas do álbum.
É inegável que há apostas ganhas nessa vertente — a maneira como Dillaz cospe de forma jocosa e com ad-libs intoxicantes por cima das vibes magrebinas de “Habibi” ou o crepitar que a correcção vocal digital acrescenta ao tom confessional das palavras do rapper em “Hello”. Mas em temas como a apressada “Cantona” ou a estática e repetitiva “Cinha”, o autotune retira propósito ao timbre característico de Dillaz. Em “Hennessy” ou “Direção Paris” — que têm dos instrumentais mais melosos e aconchegantes do álbum — o metal na voz despe de intimidade as palavras proferidas. Há um excesso de utilização desta ferramenta, cada vez mais prevalente no arsenal dos artistas actuais. No caso de Dillaz, sentimos a falta de um maior equilíbrio entre as várias vertentes da sua entrega vocal.
O Próprio é um projecto mais maduro e polido, fruto de um artista mais maduro e polido. Longe vão os tempos em que Dillaz fabricava sossegado na sua colmeia, e neste álbum abraça mais colaborações do que nunca, tanto a nível vocal como a nível instrumental. O resultado são batidas mais intrincadas, com corpo e calibre, que acompanham barras que provam que esta abelha ainda tem ferrão, num álbum que tem quase tanto de veneno como de antídoto, fiel ao seu autor.