Onde estás tu, Sandro G?
Estreou, nesta passada sexta-feira (26), Rabo de Peixe, a segunda série portuguesa criada pela Netflix.
A série, idealizada e realizada por Augusto Fraga, gira em torno do incidente da cocaína em Rabo de Peixe, vila piscatória em São Miguel, nos Açores, que ocorreu no ano de 2001. A série conta com José Condessa, Helena Caldeira, Rodrigo Tomás, André Leitão, Pêpê Rapazote, Maria João Bastos, Salvador Martinha e Albano Jerónimo nos papéis principais.
Num dos episódios de Rabo de Peixe, encontramos uma personagem, interpretada pelo músico Romeu Bairos, que avivará a memória de qualquer pessoa que possa ter crescido, de alguma forma, no início dos anos 2000. Falamos, então, de um rapper, de um artista de variedades, de seu nome artístico Sandro G.
Durante o início dos anos 2000, Sandro G tornou-se um nome reconhecido na sociedade portuguesa, muito à baila de duas canções — “Eu não vou chorar” e “Galinha” —, num fenómeno que pode ser entendido como um caso interessante de viralidade numa altura em que a Internet em Portugal ainda nem se tinha massificado. Mas a carreira de Sandro G não é só essas canções. Nem a sua história. Há mais. E esta peça também passa por aí.
Em torno da estreia da série e, paralelamente, do 20.º aniversário de “Galinha”, a Comunidade Cultura e Arte, pelo meio de sotaques, arqueologia digital, histórias insanas, narradores inconsistentes e muito boa disposição, foi à procura de responder a uma pequena, mas intrigante pergunta: Onde estás tu, Sandro G? Tudo a postos para esta viagem? Vamos a isso.
Cap. I: Sandro G e Rabo de Peixe (A série)
Comecemos não pelo princípio desta história. Na verdade, comecemos pelo mais recente desenvolvimento, aquele que nos permite escrever esta peça: a série Rabo de Peixe.
A relação entre Rabo de Peixe — a localidade — e a obra de Sandro G torna-se evidente numa das suas canções mais famosas, “Eu não vou chorar”. Portanto, faz sentido que o rapper de São Miguel — nascido em Ponta Delgada — surja simultaneamente como inspiração para a série e como uma das personagens envolvidas no enredo.
Augusto Fraga, criador da série, conta-nos como a imagem de Sandro G se tornou um alento para o universo de Rabo de Peixe. Fala-nos de como, para a sua geração — Augusto tem 44 anos —, existem duas figuras que marcaram a cultura açoriana durante o seu crescimento: Zeca Medeiros e Sandro G. Sobre Sandro, conta que aquilo que este recuperou para muito açorianos foi o “orgulho em ser açoriano”, referiu. “Quando estava a escrever a série, quis trazer esse orgulho”, confessa, “porque sempre quis representar Rabo de Peixe, aquela comunidade, a partir desse orgulho, mesmo que seja uma ficção. E o Sandro representava isso para mim”, conclui.
Foi muito pela associação entre este orgulho em ser açoriano e as singularidades de Sandro G que a sua música começou a funcionar como banda sonora, para Augusto, durante as sessões de escrita para o guião de Rabo de Peixe. “Quando comecei a escrever o guião, punha a tocar os discos dele quase como inspiração de tom”, conta-nos, e a “certa altura foi inevitável que as músicas dele tornaram-se parte da série”.
Não só as músicas de Sandro se tornaram parte da série — canções como “Eu não vou chorar” ou “Festa” fazem parte da banda sonora —, como o próprio Sandro se tornou uma personagem na série e, eventualmente, também um dos consultores para os guionistas. As histórias que este viveu durante o período em que decorre a série, em 2001, após mais de uma tonelada e meia de cocaína ter dado à costa, serviram de inspiração para alguns enredos de Rabo de Peixe, como nos conta Francisco Afonso Lopes, um dos staff writers da série. “As histórias que ele nos contava foram aproveitadas, de uma maneira ou outra, para a série porque era material demasiado bom para ser descartado”, especifica.
Porém, conseguir a contribuição de Sandro para a série não foi uma tarefa simples. Ao início, as comunicações da equipa de Rabo de Peixe não estavam a ter sucesso e acabou por ser Romeu Bairos, músico que reconhecemos da sua passagem pelo Festival da Canção ao lado dos Karetus, a fazer a ponte entre o staff e o rapper.
Romeu conta-nos que foi Vasco Eusébio, colaborador de Augusto Fraga, que lhe ligou a pedir para falar com Sandro: “Liguei ao Sandro e expliquei-lhe a cena. Foi aí que ele começou a atender”, revela. Quando serviu de ponte entre a equipa de Rabo de Peixe e o padrinho do hip hop açoriano, pouco poderia imaginar que acabaria por vestir a pele de Sandro na série.
A relação de Romeu Bairos com Sandro G é curiosa. Durante a sua adolescência, o músico natural das Furnas, São Miguel, era fã da música de Sandro. Anos mais tarde, teve a felicidade de conhecer o músico enquanto tocava para turistas, criando-se a partir daí uma amizade e cumplicidade que se mantêm até aos dias de hoje. Inclusive, foi Sandro que o ajudou a vir para Lisboa e que, durante os seus primeiros tempos na capital, o ajudou a ambientar-se.
Durante a nossa conversa com Romeu Bairos, observamos que muito daquilo que os outros participantes nesta peça relatam sobre Sandro G existe também em Romeu. A vontade de ser livre e de fazer as coisas à sua maneira, de viver a vida entre deliberações sérias e profundo humor, de criar de acordo com a bagagem açoriana que carrega em si. É o tal orgulho açoriano que Augusto Fraga nos relata, a forma como Sandro G “vê a vida” enquanto “criador e homem importante da cultura popular de Rabo de Peixe”. Há bastante disso em Romeu e, por isso, faz sentido que o universo se tenha alinhado para que este tivesse a possibilidade de encarnar o rapper em Rabo de Peixe. Durante um jantar de celebração em torno da cover story da Men’s Health, de Pedro Medeiros, um personal trainer açoriano, Romeu tocou uma canção de Sandro G e despertou a atenção de Augusto Fraga, que também estava presente nessa noite. “Depois disso, fui contactado pela equipa do casting, pediram-me uma self tape e acabei por ficar com o papel do Sandro”, releva-nos.
Assim nasceu Sandro G, a personagem de Rabo de Peixe, que surge — atenção, spoiler! — num dos episódios (o quarto da série) a ser convencida por Rafael (interpretado por Rodrigo Tomás) a dar o seu primeiro concerto em Rabo de Peixe.
Cap. II: O fenómeno Sandro G
Falamos um pouco do presente. Já lá voltamos. Mas agora é hora de rebobinar a cassete do tempo até ao início dos anos 2000. É nessa altura que ocorre a série de Rabo de Peixe e é nessa altura que, fora da ficção, o fenómeno de Sandro G surge. Porém, surge aqui a pergunta: quem é Sandro G?
No início dos anos 2000, altura em que o hip hop ganhava popularidade em Portugal à pala de artistas como os Da Weasel ou Boss AC, do outro lado do Atlântico um gigante (literalmente) começava a dar os primeiros passos no hip hop de forma oficial. Falamos de Sandro Dinis Raposo Gomes, nascido a 27 de março de 1974 (obrigada blogs que resistiram à passagem do tempo), que, no início dos anos 2000, dividia o seu tempo entre Boston, nos Estados Unidos da América, e São Miguel, nos Açores.
Numa fase inicial da carreira, em Boston, problemas com drogas serviram de obstáculo ao artista. A morte de um dos seus melhores amigos e uma estadia na prisão serviram de lição final ao homem, Sandro, para que este mudasse o rumo da sua vida. Aí, entrou a música, e o homem que aprendeu inglês a ouvir artistas como LL Cool J ou Run-D.M.C. — influências que se podem escutar na sua obra — começou a levar a sua arte mais a sério. Daí, surgiu o primeiro disco, “Sandro G” (também conhecido por “Primeiro HipHop Portuguese”), lançado em 2002, que o tornaria numa referência em São Miguel. Como é que isso aconteceu? Numa das suas passagens por São Miguel, Sandro trouxe com ele cópias do disco e, escrevia Nuno Mendes na Visão, numa peça publicada em abril de 2003, que “ofereceu uns dos discos a um familiar de Rabo de Peixe”. Então, “a obra começou por andar de mão em mão até que chegou a uma das rádios locais da ilha”, referia o mesmo artigo.
Esta espécie de passa-palavra em torno de Sandro G é um fenómeno que nos é apresentado por António Manuel Melo Sousa, ex-radialista na Antena 1 Açores/RDP que, à altura, foi um dos principais divulgadores da música de Sandro G, Romeu Bairos e Francisco Afonso Lopes.
António relata-nos como a música de Sandro chegou até ele: “A música do Sandro chegou até mim através de um amigo já falecido, o João da Ponte, produtor do José [Zeca] Medeiros e amigo do cineasta Joaquim Pinto. O Joaquim Pinto tinha ouvido o primeiro disco do Sandro e ficou bastante impressionado. Eu também”, revela-nos, acrescentando que tinha “sido imigrante em Boston durante 12 anos” e entendeu logo “where Sandro G was coming from.”
António revela-nos que quando começou a divulgar a música de Sandro G na rádio foi “muito criticado” pelos seus pares. Questionavam como “é que um radialista que adorava e divulgava jazz o mais p’rá frente se atrevia a descer tão baixo e dar importância a alguém como o Sandro. Mas fui em frente porque se tratava de um verdadeiro e legítimo fenómeno”, revela a sua frase a cintilar com uma espécie de orgulho em ter levado a sua avante.
A divulgação na rádio da música de Sandro G começou a torná-lo numa espécie de celebridade local. Os seus concertos foram contando com cada vez mais público e, paralelamente, a sua música ia sendo partilhada através de CDs piratas. Foi assim que Romeu Bairos e Francisco Afonso Lopes chegaram à música de Sandro G. Conta-nos Romeu: “Conheci a música dele como toda a gente, que foi com os CDs piratas que rodavam entre a gente”, revela. “Às vezes os CDs tinham o nome dele errado, vinha escrito Sandro Jeans”, conta sobre essa passagem de objetos mão-a-mão. “Lembro-me perfeitamente da música dele estar em todas as mixtapes ripadas em CD de todo o pessoal da minha idade”, conta-nos Francisco.
A timeline de como a música de Sandro G chegou a Portugal Continental é um pouco turva. Porém, dois clipes — aqui e aqui — no YouTube de uma entrevista com Sandro G apresentam-nos aquela que parece ser a sequência de eventos mais consensual. Herman José terá descoberto a música do artista e, após alguma insistência por parte do apresentador, foi convidado a ir ao seu programa, Herman SIC. Em 2003, numa peça publicada no jornal Correio da Manhã escrita por Miguel Azevedo, Sandro G relatava como recusou as várias insistências de Herman para ir ao seu programa: “Eu ainda vivia em Boston e ele estava sempre a enviar-me e-mails. Mas eu não sabia quem era o Herman José (nem nunca o tinha visto) e, por isso, mandava-o sempre para o ca….”, pode-se ler no artigo. “Só quando cheguei aos Açores é que perguntei quem era o gajo. Tive de lhe escrever a pedir desculpas, claro!”, lê-se.
As passagens de Sandro G pelo programa de Herman José, que incluíram o icónico momento em que este convida Herman a ir aos Açores fumar uns charros, levantaram o interesse de alguns agentes da indústria musical portuguesa à altura, e Sandro acabou por fechar contrato com a NZ Produções e com a Fábrica de Espetáculos. Corria o mês de abril de 2003. Semanas mais tarde, “Galinha”, disco produzido quase na sua íntegra por Boss AC (o próprio confirmou-nos a veracidade deste statement), era lançado. Incluía as canções “Eu não vou chorar” e “Galinha” que se tornaram hits em Portugal e são, ainda hoje, aquelas que mais rapidamente associamos ao nome de Sandro G.
No entanto, “Eu não vou chorar” e “Galinha” são canções muito diferentes entre si. “Eu não vou chorar” é um tema que resume muitas das dificuldades de quem vive na zona de Rabo de Peixe, que ainda hoje é visto como um “símbolo” para os açorianos, acredita Augusto Fraga. “Galinha” é um party banger que, como descreve Francisco Afonso Lopes, parece ter sido criado com o total intuito de meter o pessoal a curtir a pista de dança na “discoteca mais manhosa do país”.
Esta dicotomia é algo que se estende a praticamente toda a obra de Sandro G. Conseguimos encontrar canções, como “My Baby”, “Festa” ou “Pão com Manteiga”, que surgem de um contexto algo humorístico, mas depois temos faixas como “Where I’m From” ou “Fala”, que surgem a partir do relato da sua vivência dividida entre os EUA e os Açores. Ao todo, a obra de Sandro é formada (até ver) por sete discos: os já mencionados “Sandro G” (2002) e “Galinha” (2003), e ainda “The Final Chapter?” (2004), “The Green Card” (2007), “Brincadeira” (2008), “My Baby” (2010) e “Pão com Manteiga” (2013).
Online, existem ainda vestígios no SoundCloud de um oitavo disco (ou side-project) intitulado “The Gift” e de uma linha de merchandising, denominada Raça. Mais recentemente, em 2020, Sandro G voltou, momentaneamente, ao ativo ao colaborar com o DJ açoriano Souza, em “Todo Dia” (refira-se, faixa bem pesada e que já dá para pensar sobre o legado de Sandro no hip hop tuga pelo seu flow e voz bastante distintos dos restantes players da cena).
Cap. III: O legado de Sandro G
Há duas formas de olhar para o legado de Sandro G: uma é a partir do legado que deixa no hip hop açoriano e na música urbana dos Açores, e outra é a forma como este se incrustou na memória coletiva do público e nos seus pares em Portugal Continental.
Nos Açores, Sandro ainda é visto como a referência para o hip hop açoriano. Diogo Lima, natural da Ribeira Grande, São Miguel, e realizador do (curto) documentário AZ-RAP: Filhos do Vento, fala-nos da evolução do hip hop açoriano na década que se seguiu ao aparecimento de Sandro G: “O conceito de uma cena de rap açoriana só começou a fazer sentido alguns anos depois do fenómeno Sandro G quando, no final dos anos 2000, surgiram alguns artistas como Puto Ems, Fugitivo e Kapu na Terceira; Ás e Fred Cabral em São Miguel”, conta-nos.
“Quando o AZ-RAP foi criado, em 2016, as informações sobre o rap açoriano eram ainda bastante escassas. 60-70% da música local continuava a ser feita em moldes precários, com beats tirados de qualquer lado, por gente que acabava por desistir de tentar. Havia pouquíssimos lançamentos físicos e assim que aparecia alguma coisa de jeito, no YouTube ou SoundCloud, seguia-se a desilusão de perceber que não havia mais música, ou que o resto não seria tão promissor”, conta-nos Diogo Lima sobre o mapeamento que fez durante a preparação do minidocumentário. “Contei entre dez a quinze nomes no ‘ativo’, nessa altura”, elabora, colocando em destaque mais alguns nomes como Goldshake, Valério, LBC ou Swift Triigga, que chegou mesmo a ser apadrinhado por Sandro nos Estados Unidos.
António Manuel Melo Sousa fala-nos de como a experiência de Sandro G enquanto “homem e rapper não tem nada a ver, de longe, com a experiência dos rappers que apareceram depois dele nos Açores, embora alguns deles tenham desenvolvido um trabalho deveras interessante”. Desses todos que surgiram depois, aquele que talvez mais se aproxime de Sandro G enquanto herdeiro do seu “trono” é LBC, muito por cantar sobre temáticas sociais que ecoam a forma como Sandro falava da vida, em São Miguel. Conta o realizador de AZ-Rap que, para ele, LBC “é o verdadeiro herdeiro da parte boa do trabalho do Sandro G. Do consumo e tráfico de heroína à vida mais calma como homem do lixo, refugiou-se no rap como alternativa à má vida”. O sentimento é ecoado por Francisco Afonso Lopes: “O LBC é o sucessor mais parecido com a música do Sandro G porque as músicas dele têm uma temática social que a maioria dos rappers dos Açores não tem”, indica, esclarecendo que a temática social da música vem a partir “do ponto de vista de um gajo que era agarrado à heroína e que trabalha a apanhar lixo na Câmara Municipal de Ponta Delgada.”
Diogo Lima conclui: “É difícil evidenciar traços distintivos do rap feito nos Açores. O sotaque e a abordagem cada vez mais esporádica à insularidade serão, talvez, os mais relevantes, mas a diversidade de abordagens por parte dos artistas locais tornam rebuscado afirmar esses pontos como marcos de uma identidade única na forma de fazer rap nas ilhas.”
O sotaque e a abordagem à insularidade, associadas à sonoridade de gangsta rap que se massificou no hip hop durante meados da década de 90, são características da música de Sandro G. Porém, se isto faz total sentido tendo em conta o seu background, em Portugal Continental este fator funciona um pouco com consequências algo contrárias. Por um lado, permitiu a Sandro distinguir-se dos contemporâneos e chama a atenção para a sua obra; por outro, acaba por ser algo que torna Sandro numa espécie de “meme” exótico — lembram-se quando o Nurb parodiou “Eu não vou chorar”? Até o Sandro chegou-lhe mesmo a mandar props — que se foi desvanecendo de muita da memória coletiva, não correspondente ao estatuto e influência que este conseguiu açambarcar ao longo da sua carreira, particularmente nos Açores.
“Nunca lhe deram o valor que eu acho que ele tem no continente”, conta-nos Augusto Fraga. Romeu Bairos fala sobre como este acha que é vista a música de Sandro G: “É vista de duas maneiras, como música muito boa, com muito conteúdo e meaning, mas depois há a parte mais ignorante da cena que goza com a música do Sandro.”
Diogo Lima conta-nos sobre a relação que foi tendo com a sua percepção do que os outros, em particular os continentais, achavam da música e persona de Sandro G. Depois de lhe ser dado a descobrir o rapper pela sua professora de educação musical — que lhe deu uma cópia do disco de estreia de Sandro –, começou a perceber que Sandro era uma figura reconhecida além das ilhas. Diogo fala-nos sobre como chegou a essa conclusão: “No início dos anos 2000, em S. Miguel era preciso ter TV Cabo para conseguir ver mais do que RTP1 e RTP Açores, por isso a noção de que o Sandro G era um fenómeno nacional só me chegou quando o teledisco da ‘Galinha’ começou a passar no TOP+ da RTP e, assim, descobri que o gajo entrava numa compilação NOW. O fenómeno Sandro G foi o mais viral que dava para ser entre 2002 e 2005”, conclui.
Porém, mesmo nos Açores, existe alguma renitência na forma como Sandro G foi visto ao longo do tempo. Se em São Miguel e, particularmente, em Rabo de Peixe, tornou-se um símbolo de orgulho, em Ponta Delgada a visão do trabalho de Sandro era ligeiramente diferente. Francisco Afonso Lopes conta que, durante muito tempo, sentia que havia muito pouca gente a “pensar de forma mais série sobre a música” do artista, por “muita pena” sua. “Depois do single com o Souza senti que houve malta a começar a pensar mais sobre a música do Sandro”, relata-nos. António Manuel Melo Sousa conta-nos como Sandro era “muito popular entre a juventude rural e alguma urbana”, mas que também foi criticado por “gente da elite” cultural açoriana e pelo “establishment em geral”.
Contudo, nos seus pares do hip hop tuga, existe maioritariamente respeito perante a figura de Sandro G. Além de sabermos que “Galinha” foi produzido por Boss AC — o que, em 2003, tinha um certo estatuto associado —, António Manuel Melo Sousa conta-nos a história de quando os Da Weasel deram um concerto na ilha de Santa Maria, no festival Maré de Agosto, do qual foi um dos seus fundadores: “O Pacman (agora Carlão) convidou o Sandro para subir ao palco para uma sessão de freestyle rap. Foi fantástico com o Sandro a rimar, sobretudo em inglês”, conta. Revela-nos também que Carlão e Virgul ficaram amigos de Sandro, um facto também relatado por Romeu Bairos: “Uma vez estive com o Carlão e falei com o Sandro e ele disse ‘mega respect’”. Relembra também quando Plutónio foi a Rabo de Peixe e colocou uma story no Instagram com a música do Sandro. Em 2018, fez parte de uma conversa transatlântica com Gson, mediada por Rui Miguel Abreu, evidenciando mais uma vez o respeito dos peers pelo seu trabalho.
Mas nem sempre foi assim. António Manuel Melo Sousa lembra que, à altura do seu pico de popularidade, chegou a ser vaiado por alguns rappers, “mas hoje são todos amigos”, conta.
Cap. IV: Onde estás tu, Sandro?
Sentamo-nos na mesa em casa de Romeu Bairos. Há um nervosismo que se espalha pelo ar enquanto esperamos que o telemóvel de Romeu efetue a chamada para o outro lado do Atlântico. Se fosse há 20 anos, falaríamos literalmente de uma ligação telefónica, mas aqui, falamos de uma ligação via Facebook, com vídeo à mistura e tudo. Do outro lado da linha espera-nos Sandro, prontos a receber-nos em sua casa — de forma literal.
Passava pouco das 21 horas em Lisboa, Portugal Continental. Em Nova Inglaterra, algures entre Boston e Rhode Island, talvez a passar por Fall River — todos locais mencionados durante as várias conversas que construíram esta peça —, são menos cinco horas. Sandro atende, é um final de dia de trabalho. É um homem encorpado, largo, vestido com o drip de alguém que carrega em si um pouco de gangsta e muito de trabalhador.
Durante os momentos iniciais da conversa, Sandro faz-nos uma visita guiada por alguns espaços da sua casa, nos Estados Unidos. Notamos que existe um G gigante no pátio da sua casa. Mostra-nos os seus animais, que incluem galinhas, cães e pássaros, criados a partir de um dos seus passatempos recentes, a columbofilia. Vemos carros, motos-quatro, locais de descanso e relaxamento, que este refere que foi ele que construiu. Temos até o privilégio de o ver praticar uma pequena sessão de boxing, numa indicação que continua a ter interesse em manter a forma física que também faz parte da sua imagem. Vemos uma bandeira dos Açores e outra de Portugal. Fala-nos num misto de inglês americano e o seu trademark português com sotaque açoriano.
Quando se senta para iniciar a conversa de forma oficial, Sandro, com simpatia, rapidamente esclarece-nos que não é um rapper, “é um hustler”. Mais tarde, na conversa, volta a esclarecer: “Eu não era bem um rapper, eu era um contador de histórias. Eu contava coisas sobre a minha vida”. Conta-nos que raramente já dá entrevistas e que, depois de 25 anos na “ribalta”, já não tem tanto prazer em fazê-lo. A sua última entrevista registada foi em 2020, ao Rimas e Batidas, aquando do lançamento da faixa com Souza.
Nessa entrevista ao ReB, contava que não aparecia em Portugal há 20 anos e nos Açores já fazia uma década que não visitava o arquipélago que o viu nascer. Perguntamos o porquê da ausência longa. Obtemos resposta: um problema legal com a imigração dos Estados Unidos. “Quando voltei aos EUA, da última vez que estive nos Açores, fui sinalizado pelo meu cadastro e colocado em liberdade condicional de imigração e com estatuto para ser removido. Já passou dez anos e ainda não está resolvido. Vou a tribunal dia 18 de setembro para resolver isto tudo”, conta-nos. “Se tudo correr como planeado, vou poder voltar [aos Açores] no próximo ano porque, durante estes dez anos, estive fora de sarilhos”, revela-nos.
Falamos do impacto que deixou no hip hop em Portugal: “Bem, no hip hop português acho que não tive, propriamente, impacto”, conta-nos. “Podemos falar dos Açores, sabes? Posso ser mencionado com muitos artistas dos Açores”. E pode. A nível de música popular no arquipélago, o nome de Sandro surge como dos mais cotados, localizado entre referências como Zeca Medeiros, Susana Coelho, Aníbal Raposo ou Nelly Furtado (muito mencionada como referência açoriana nestas conversas). “Mas quando falamos de hip hop em Portugal, eu fiz mesmo muito pouco no game comparativamente com outros”, opina Sandro sobre o seu impacto. “Para mim, o Sam the Kid é o GOAT”, confessa, revelando a sua admiração pelo artista de Chelas, Lisboa. “Ele é produtor, faz isto há anos, e tem muito sucesso naquilo que faz. Eu sou diferente. Nunca fui de estar ao escritório ou de estar muito tempo de volta de um estúdio, sabes?”, conta-nos. Em 2003, à revista Visão confessava sobre como criava cantigas: “Saem naturalmente. Tenho uma ideia e enquanto penso na letra vou logo imaginando as músicas e os arranjos”. À altura, indicou que cada música demorava “umas duas horas a ficar pronta”.
As histórias vão-se replicando ao longo da conversa. Se da boca dos outros fomos ouvindo pequenos excertos de mitos, da boca de Sandro vamos ouvindo histórias — umas que podemos publicar e outras certamente que não — que nos lembram que estamos a ouvir falar alguém que já viveu muito. Existe, por outras palavras, pouco filtro. Uma expressão inglesa adequa-se: What you see is what you get. Ou como diz o Augusto Fraga, “ele é uma pessoa que se mostra em toda a transparência, sabes? Isso é incrível, e raro também.”
Uma das histórias favoritas que Sandro nos conta é de quando tentou trazer dez mil CDs do álbum “The Final Chapter?”, o seu quarto disco, dos Estados Unidos para oferecer à população dos Açores. Corria o ano de 2006 aquando dessa história. Sandro tinha acabado de ser pai: “Esse é o meu disco favorito, que fez parte da minha vida quando voltei para os meus fãs. Estava num momento especial na minha vida”, revela.
Atualmente, a música de Sandro G não se encontra disponível na sua totalidade nesse universo curioso e problemático que chamamos de serviços de streaming. Apenas existe uma antologia/compilação intitulada de “Música Do Padrinho Do Hip Hop Açoreano”, que contém 27 das mais emblemáticas faixas do rapper.
Tentamos perceber se Sandro é o dono da sua música e se esta ainda existe, na totalidade, algures: “Eu tenho tudo guardado e sou dono de toda a minha música”, revela-nos. A dúvida, porém, paira no ar (de acordo com Romeu, para a série, foi necessário “recriar instrumentais” por não se saber contratualmente quem era o dono do quê). Conta-nos como a NZ o tentou enganar ao ficar com os direitos de “Eu não vou chorar” e “Galinha”, numa altura em que a carreira do rapper estava num all time high, com múltiplas aparições em programas de televisão (numa altura em que isso tinha maior importância) com artigos em revistas e, até, com um poster da Bravo (se alguém tiver uma cópia disso, por favor, envie-nos foto).
Perguntámos se há planos para fazer retornar a sua obra a um mundo onde esta possa ser escutada na íntegra. “Neste momento, tenho outros planos”, conta-nos, pedimos para mostrar quais eram os seus planos. Mostra-nos uma faixa do filho, Sandro G2, num momento de pai babado: “Sou o maior fã do meu filho”, confessa-nos. “Ele faz música a sério e está a trabalhar com uma boa equipa de produção nos Açores”, revela-nos. Conta que o filho mostrou-lhe artistas da cena mais recentes, como Sippinpurp, Richie Campbell, Mishlawi ou Plutónio, sendo que este último vinha ficar em casa dele aquando da sua ida aos Estados Unidos para a gala dos Prémios Internacionais da Música Portuguesa 2023. “Somos amigos, por isso temos posto a conversa em dia. Ele está entusiasmado por vir a Nova Inglaterra pela primeira vez. Não conhece a zona e precisava de um anfitrião, alguém que lhe desse a conhecer a área. Sinto-me muito honrado, sou fã dele“, revela.
A conversa prossegue e, por entre piadas e bom humor, parece que existe uma espécie de paz de Sandro com o seu passado. A palavra “felicidade” escapa-nos durante a conversa. “Querem saber porque estou feliz?”, pergunta-nos Sandro. Fala-nos da família, do orgulho em estar bem casado, de ter os seus filhos a conseguirem viver as vidas que querem. A filha está na universidade e vive com o namorado — “qualquer dia, liga-me a dizer que vou ser avô”, conta-nos entre sorrisos. O seu filho mais velho é Sandro G2, quer seguir as pisadas do pai na música. O do meio pratica boxe e vai ter o primeiro combate em breve. O mais novo interessa-se por desporto. “Adoro a minha família”, confia-nos. “Sou mais do que a minha música. O que aconteceu é que eu contei a minha vida música em música e as pessoas relacionaram-se. Foi isso que aconteceu”, concluiu.
Eventualmente, falamos do seu papel enquanto conselheiro para os escritores da série. “Ao início, mandei o Augusto dar uma volta”, conta-nos. Mas eventualmente, com a ajuda de Vasco Eusébio e de Romeu, foi convencido a alinhar, especialmente depois de conversar com Augusto. Em sequência do tópico, Sandro pede a Romeu que toque a “nova” versão de “Eu não vou chorar”, incluída na série. Tocada apenas com viola da terra, é uma rendição bonita que escutamos, com Sandro a dar a sua aprovação. “Vês, Romeu? 20 anos depois, criaste outro clássico”, brinca. Mas na brincadeira há verdade — e uma certa nostalgia. Ainda assim, a vida continua.
Cap. V: E agora?
Augusto Fraga fala-nos sobre como espera que Rabo de Peixe sirva de avalancha a um possível fenómeno semelhante a Sandro G em Portugal. “A série recupera parte da cultura popular açoriana, desde a música até outras tradições. Pode ser que ajude a devolver essa presença açoriana nos palcos do continente. Tens outros referentes, como a Lúcia Moniz [pai açoriano] ou o Nuno Bettencourt [dos Extreme], mas o fenómeno Sandro G não se repetiu”, conta-nos o criador de Rabo de Peixe. Francisco Afonso Lopes relembra-nos também o caso do próprio Romeu Bairos, que foi ao Festival da Canção, onde a sua faixa com os Karetus (“Saudade”) chegou a ser vista como uma das favoritas para vencer a edição de 2021.
Particularmente no campo do hip hop — mas não só — é complicado para artistas açorianos conseguirem que as suas criações brotem além do arquipélago, e nem sempre é por uma possível falta de qualidade. Diogo Lima fala-nos sobre possíveis razões para essas dificuldades. “A insularidade, a inexistência de uma massa crítica que consuma arte regional e a distância dos grandes centros urbanos limitam exponencialmente o potencial de artistas açorianos em formar um semblante de carreira. Muitos também são jovens promissores que, por terem de ir estudar para Portugal Continental, mudam de prioridades”, explica o realizador.
Existe alguma esperança de que Sandro G regresse ao ativo e que os seus problemas legais se resolvam para poder regressar aos Açores e, quiçá, até a Portugal Continental. Romeu fala-nos do sonho de produzir um disco que mistura trap e folclore para o rapper de São Miguel e que sente que este poderia “fazer uma grande digressão em Portugal. Podia fazer uma tour de clubs primeiro e depois uma tour maior”, remata.
Francisco Afonso Lopes fala de uma certa ânsia dos seus fãs de São Miguel em ver retornar o “D. Sebastião” da música regional açoriana à sua terra. “Está tudo à espera para o ver sair do nevoeiro com seu bling bling do Santo Cristo dos Milagres”, brinca Francisco, referenciando-se ao ornamento que Sandro utiliza no videoclipe de “Todo Dia”. “É uma peça digna de Uncut Gems“, brinca.
“O Sandro quando voltar a Rabo de Peixe, e creio que a série vai recuperar muito da memória do Sandro e da importância que ele teve para aquela zona, vai chegar rodeado de gente e tapete vermelho, não duvides”, conta-nos Augusto. “E vai ser mesmo do coração”, conclui, em tom esperançoso.