Opinião. O equívoco social-democrata de Francisco Sá Carneiro
Li com particular atenção o texto de Lucas Brandão, publicado na Comunidade Cultura e Arte no dia 9 de Janeiro de 2020, atendendo ao meu interesse pelo tema e por estar a trabalhar, neste momento, num ensaio dedicado à social-democracia ou socialismo democrático em Portugal. Apesar de o texto discorrer sobre factos e ideias que à partida parecem consensuais, discordo dele no geral e ainda mais do seu objectivo. A tentativa de justificar uma natureza social-democrata ao velho Partido Popular Democrático (PPD), ou, neste caso, utilizar a figura de Sá Carneiro para tal, é um erro grosseiro que, quer os historiadores quer os jornalistas e cronistas, continuam a cometer. E é a partir dessa ideia falsa que boa parte da população portuguesa é equivocada quanto ao significado da social-democracia e instigada por tal a procurar diferenças, neste caso a inventá-las, entre social-democracia e socialismo democrático, em Portugal aquela supostamente defendida pelo Partido Social-Democrata (PSD) e este pelo Partido Socialista (PS). É necessário interpretar as fontes para além daquilo que elas nos oferecem e que é supostamente óbvio ao nosso olhar; perceber o contexto em que foram produzidas e as dinâmicas que lhes estão subjacentes, isto é, ir além da simples inventariação e transcrição de factos através da interrogação das fontes, como bem nos ensinou a Escola dos Annales.
Boa parte do que se passa actualmente no PSD, nomeadamente o confronto ideológico interno entre os sobejos sociais-democratas, uma facção minoritária, e um grande bloco dividido entre conservadores liberais e liberais sociais, conflitos que ali não são novidade, pode ser explicado pela história desta particularidade portuguesa, o PPD, a que chamo de “equívoco da revolução”. Costumo dizer, a jeito anedotário, que deve ser hilariante durante uma reunião do Partido Popular Europeu (PPE) – família europeia que representa a democracia cristã e o conservadorismo liberal – fazer a chamada dos membros e na vez de Portugal o seu maior partido membro denominar-se social-democrata. Não por ter existido em Portugal dois partidos a reclamarem-se da social-democracia. Por exemplo, em Itália e no Reino Unido coexistiram dois partidos sociais-democratas, no primeiro caso o Partido Socialista Italiano e o Partido Socialista Democrático Italiano, [1] e no segundo o Partido Trabalhista e o Partido Social-Democrata [2]. Mas porque a discussão, no caso português, parece residir na continuação de uma bizarria no sistema partidário que tem as suas origens no Estado Novo e no 25 de Abril: a existência de um partido social-democrata de nome que na realidade representa a direita democrática portuguesa, eleitorado conservador, liberal e católico.
Não podemos esquecer que Portugal esteve sequestrado durante 48 anos por uma ditadura corporativa de direita e isso teve reflexo na configuração da direita democrática após o 25 de Abril, todavia, não foi apenas esse factor que criou o equívoco. Sá Carneiro teve culpa e o PS, nomeadamente Mário Soares, também. Por um lado, Mário Soares, antes do 25 de Abril, e ainda no tempo da Acção Socialista Portuguesa (ASP), aceitou fazer um jogo de cintura político entre a crítica à social-democracia ocidental e os elogios ao socialismo democrático e ao marxismo, salientando a importância das experiências chinesa ou jugoslava, mesmo contra as suas convicções, como forma de recrutamento de jovens quadros da oposição para o campo socialista num período de progressiva radicalização que se verificou a partir de 1969. Aliás, na declaração de princípios e programa do PS, datada de 1973, a social-democracia é repudiada: “o Partido Socialista repudia o caminho daqueles movimentos que, dizendo-se social-democratas ou até socialistas acabam por conservar deliberadamente ou de facto, as estruturas do capitalismo e servir os interesses do imperialismo” [3]. No entanto, Mário Soares, após o 25 de Abril, volta à sua zona de conforto para repor a verdade, referindo sistematicamente que social-democracia e socialismo democrático significavam a mesma coisa [4]. Tal circunstância levou a que muitos sociais-democratas reformistas não marxistas, de tradição republicana, como Nuno Rodrigues dos Santos, Olívio França ou Artur Cunha Leal nunca alinhassem na ASP ou no PS e fossem para o PPD. Por outro lado, Sá Carneiro necessitava desses oposicionistas para dar ao seu projecto político um cunho antifascista e democrata. É verdade que Sá Carneiro mostrara um grande trabalho de semi-oposição na chamada “Ala Liberal” e, a partir de 1973, de oposição assumida, com a renúncia ao mandato de deputado, mas a afirmação do PPD, dadas as circunstâncias do pós-25 de Abril, estava pendente de uma prova de corte com as instituições e figuras do antigo regime.
Em 1971, numa entrevista a Jaime Gama, para o República, Sá Carneiro considerou-se social-democrata. Afirmou conhecer Mário Soares quando Gama lhe falou que a social-democracia é representada em Portugal por aquele, admitindo no entanto não ter qualquer aproximação ao grupo soarista. Se por um lado, Sá Carneiro rejeitou a sua filiação na democracia-cristã devido ao carácter confessional que tal julgava implicar, o que não é bem assim e que o próprio também reconheceu, por outro, assumiu o personalismo, que como é sabido inspirou a democracia cristã [5]. Sá Carneiro, aliás, filia-se no “socialismo consentâneo com o personalismo” e no liberalismo político, na realidade uma soma que dá o interessante resultado de democrata cristão. Em todo o caso, já havia ficado assente em 1973, numa das reuniões do grupo ligado à “Ala Liberal” e à SEDES [6], que o caminho não seria a formação de um partido democrata cristão, porque, nas palavras de Barbosa de Melo, “política é política e religião é religião”, ideia reconfirmada numa das primeiras reuniões após o 25 de Abril [7]. Esta separação pragmática e racional entre política e religião é uma lição de dúvida e prevenção tirada dos tempos da I República.
Na verdade, o que o então jovem político portuense queria dizer é que se revia nas sociais-democracias ocidentais onde existia alternância de poder entre um partido social-democrata e um partido conservador-liberal que não renegava as preocupações sociais. Apesar de inicialmente se considerar, tendo em conta, porventura, alguma confusão e desconhecimento de termos e significados ideológicos próprio das circunstâncias de então, Sá Carneiro não era um social-democrata. As suas origens e influências políticas não vêm de uma tradição operária – raro na social-democracia portuguesa – ou da República – mais comum –, mas do catolicismo, da doutrina-social da Igreja e do personalismo de Mounier, o que o faz mais num católico com preocupações sociais, ou seja, um democrata cristão, do que qualquer outra coisa. É o próprio Barbosa de Melo que o reconhece: “Sá Carneiro, apesar de ter declarado numa entrevista a Jaime Gama, no jornal República, que era social-democrata, era muito mais liberal que social-democrata […]. Naquela altura havia muita gente que dizia uma coisa e depois nos jornais dizia outra” [8].
A porta aberta deixada por Mário Soares é meio caminho andado para uma tentativa de ocupação do espaço social-democrata com a criação do PPD. De facto, há uma componente social-democrata, bernsteiniana, inspirada no Programa de Godesberg (1959) do SPD alemão, na fundação do PPD que é marcada não por Francisco Sá Carneiro mas pelos velhos republicanos e novos sociais-democratas reformistas, nomeadamente o grupo de Coimbra, que a ele aderem e que a maioria, em 1979, entra em ruptura e sai com a criação da Acção Social-Democrata Independente, mais tarde parceira de coligação do PS e onde acaba por se dissolver. Miguel Veiga, republicano social-democrata da última geração de oposicionistas ao Estado Novo, confirmou que o primeiro documento programático do PPD redigido em Lisboa, reconfirmado, também, pela biografia de Mota Pinto da autoria de João Pedro George que foi redigido em casa de Balsemão, era considerado, para o grupo de Coimbra, liberal, de centro-direita, e que dessa forma não aceitariam integrar o Partido. Sá Carneiro incumbiu de imediato Barbosa de Melo a escrever um novo programa [9].
Tudo o que advém daí, desde as linhas de um partido de centro-esquerda, socialista não marxista, defensor da co-gestão, da reforma agrária e da participação dos trabalhadores na organização e planificação da economia [10], passando pela adesão ao Movimento Democrático Português, à reivindicação do legado de Jaime Cortesão, António Sérgio ou Humberto Delgado, até às tentativas de adesão à Internacional Socialista (IS) ou à liderança de Emídio Guerreiro foram, para Sá Carneiro e mesmo para a maioria do “povo PPD”, episódios ideológicos proporcionados e determinados pela conjuntura revolucionária e que a linha social-democrata do Partido protagonizou. Mas cedo se percebeu a verdadeira vocação do Partido quer pelas opções do seu líder natural, Sá Carneiro, e seus compagnons, quer pelo seu eleitorado. Num partido que se debatera com alguns problemas de identidade ideológica e com uma tradição inventada, internacionalmente quase na terra de ninguém, os liberais e a democracia cristã foram sempre os parceiros preferíveis para aqueles do que os da IS. A título de exemplo, Sá Carneiro, no verão de 1974, chegou a avistar-se durante a sua estada em Bruxelas com os dirigentes do Partido Social-Cristão Belga [11] e mais tarde travou conhecimento com o presidente da União Europeia dos Democratas Cristãos, Von Hassel [12]. Também Rui Machete desenvolveu contactos e conseguiu apoio através da Fundação Friedrich Naumann, ligada ao Partido Liberal Alemão [13].
Sá Carneiro configura algo mais importante e que não é imediatamente visível num partido que andou sempre entre uma realidade inventada e uma realidade de facto: a noção de partido popular que era o PPD, à semelhança dos congéneres europeus do PPE, ou seja, a representação do eleitorado da direita democrática portuguesa: interclassista, conservador, católico e anticomunista. Isto é perfeitamente evidente aquando da formação da Aliança Democrática (AD). Já com o problema do grupo das “opções inadiáveis” resolvido, não obstante continuar a existir uma franja social-democrata no PSD, contudo já mais reduzida, Sá Carneiro aproximou-se à sua direita e estabeleceu um acordo de coligação pré-eleitoral com o Centro Democrático Social – uma consequência do equívoco do PPD –, o Partido Popular Monárquico e o grupo dos Reformadores, dissidentes do PS. A conhecida AD, que acabou por vencer as legislativas de 1979, representou a vitória do programa reformista liberal-conservador representativo da então moderna direita democrática europeia: um projecto de revisão constitucional, reversão das nacionalizações realizadas durante a conjuntura revolucionária, desenvolvimento de um estado social mais liberal – “o País inteiro conhece os vastos inconvenientes de uma excessiva estatização dos cuidados de saúde” [14] –, entre outras propostas dentro da sua área.
Quis o acaso que o novel partido em 1974 se chamasse PPD por já existir em Maio um Partido Cristão Social-Democrata, que acabou por se revelar próximo da extrema-direita, e pela ponderação da Acção Democrato-Social [15] se transformar em partido [16]. Em 1976, o PPD passou a PSD. Não deixa de ser curioso como é que o PPD foi mais PSD (social-democrata) e desde aí o PSD foi mais PPD (popular). Concordo quando Lucas Brandão afirma que Francisco Sá Carneiro é “um dos grandes baluartes da democracia portuguesa, nomeadamente daquilo que é o Partido Social-Democrata”. É, de facto, a cara das suas contradições ideológicas, mas outrossim a da direita democrática portuguesa que ele representa, e esta sim liberal, conservadora e com fortes laivos democratas cristãos.
Texto escrito por Gabriel de Oliveira Feitor.
O Gabriel nasceu e foi criado na terra da sola, Alcanena. Entre o Ribatejo e Lisboa é investigador e doutorando em História Contemporânea. É também um entusiasta por política, livros, música, dança contemporânea, liberdade e pela vida.
[1] DROZ, Jacques, O Socialismo Democrático, 1864-1960, Mangualde, Edições Pedago, 2014, pp. 356-357.
[2] http://news.bbc.co.uk/onthisday/hi/dates/stories/march/26/newsid_2531000/2531151.stm.
[3] Declaração de Princípios e Programa do Partido Socialista, Roma, Textos “Portugal Socialista”, 1973, p. 6.
[4] AVILLEZ, Maria João, Soares, Ditadura e Revolução, Lisboa, Público, 1996, p. 146.
[5] República, 15 de Dezembro de 1971.
[6] Associação para o Desenvolvimento Económico e Social fundada em 1970 e tolerada pelo marcelismo. Agrupava várias tendências, mas preponderavam pessoas próximas da “Ala Liberal” e dos tecnocratas liberais.
[7] MELO, Barbosa de Apud GEORGE, João Pedro, Mota Pinto. Biografia, Lisboa, Contraponto, 2016, p. 127.
[8] Ibidem, p. 136.
[9] GEORGE, João Pedro, Mota Pinto. Biografia, Lisboa, Contraponto, 2016, pp. 135-136. E ainda entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Miguel Veiga, 2011. Disponível em: https://anabelamotaribeiro.pt/76431.html.
[10] PPD. O que somos e o que não somos, Setembro de 1974.
[11] Hoje denominado Democratas-Cristãos e Flamengos. Cf. Povo Livre, 24 de Setembro de 1974.
[12] Expresso, 15 de Novembro de 1975.
[13] GEORGE, op. cit., p. 141.
[14] Programa eleitoral de governo, Aliança Democrática – AD, 1979, p. 26
[15] A Acção Democrato-Social, agrupamento sucessor do Directório Democrato-Social (f. 1957), foi fundada em 1963 e reunia a oposição republicano-liberal e republicano-socialista, tendo uma considerável atividade ao nível da reflexão e discussão política na esfera pública através da publicação de comunicados e envio de cartas públicas às figuras proeminentes do regime.
[16] O Século Ilustrado, 30 de Novembro de 1974.