Ornatos Violeta: o monstro precisa de amigos, mas família já a tem
Desde o primeiro momento que os membros dos Ornatos Violeta pisaram o palco quadrado – colocado no centro da arena do Campo Pequeno, rodeado de público a trezentos e sessenta graus – que se impôs a sensação de familiaridade que o restante concerto viria a confirmar. Os sorrisos em cima do palco e na plateia; os aplausos calorosos e a expectativa de quem celebra mais um raro regresso; os itinerários de gratidão que alguns dos músicos fizeram logo de entrada em cima do palco. Um cenário de aquecer o coração. Foi esta a emoção predominante na noite de sexta-feira, no Campo Pequeno, última data planeada na agenda da banda portuguesa (que este ano deram cinco concertos, na sua generosidade tanto para com os ouvintes de longa data como para com os novos que ainda não haviam tido oportunidade de os ouvir).
Vinte anos e duas semanas antes, era lançado um dos álbuns mais icónicos do rock alternativo português – O monstro precisa de amigos teve, pois, direito a honras da casa nesta noite. Tocado na íntegra, e desde logo num extenso grande bloco de seis canções seguidas praticamente a abrir o concerto. Após o primeiro tema ser “Como Afundar”, mergulha-se no álbum de 1999 a partir do segundo: “Tanque” é palco para as primeiras reacções mais efusivas da plateia.
Como não destacar dois dos mais emotivos momentos da sua discografia? Primeiro “Para nunca mais mentir”, com a sua sequência de verbos encostados e emaranhados, ao serviço de uma dificuldade de expressão que resulta em sinceridade; e “Ouvi dizer”, que aparece cedo no concerto, e põe toda a plateia a cantar do princípio ao fim (como de resto aconteceu noutros temas, embora não com tanto ímpeto). Manel Cruz cala-se em dados momentos, para escutar a arena a uma só voz – mais que uma nostalgia actualizada, palavras que acompanharam a vida de tantos dos presentes.
Falemos deste autêntico animal de palco que é Manel Cruz – um caso extraordinário de garra, voz impecável, corporalidade expressiva, e calorosa simpatia. Que maestro, capaz de agarrar uma orquestra tão grande que o rodeia a toda a volta. Volta e meia vai trocando de t-shirts, mas às vezes nem uma música as aguenta do princípio ao fim – de tronco nu a maior parte do concerto, símbolo mais que adequado para a alma nua que expressa nas suas letras cruas. Manel concentra em si muita da mística dos Ornatos.
Mas está bem rodeado de outros músicos talentosos. O diálogo entre a guitarra de Peixe e as teclas de Elísio Donas é assinatura do som da banda, sugerindo pontes entre aquela sonoridade e a de OK Computer, álbum seu contemporâneo construído sob premissas sónicas não totalmente distantes. Aos meus ouvidos soa-me especialmente emotivo o encanto das teclas – os mesmos efeitos, ou tão semelhantes que não se nota a diferença, das gravações de 1999. Máquinas do tempo imbuídas num teclado, com a delicadeza das melodias e acompanhamentos que interpretam. Gostava de ter ouvido a guitarra principal mais alta, mas nunca posso ter a certeza se a culpa é do meu posicionamento na sala. Nuno Prata e Kinörm, no baixo e na bateria, também dão tudo – este último especialmente efusivo, nas nuvens, ilustração da gratidão em pessoa.
O concerto segue. Os temas mais efusivos, “O.M.E.M”, “Chaga”, fazem levantar as bancadas. Mas há que fazer justiça àqueles que, mesmo nos lugares sentados, se reposicionavam para poder dançar o concerto todo (tentando não incomodar ninguém). A emoção mantém-se sempre muito à flor da pele. Há trocas de olhares entre pessoas no público, uma ou outra reacção mais visceral a determinado verso. Lá em baixo, na plateia de pé, em algumas das arestas do palco o público é mais efusivo que noutras – há uma que se destaca, a aresta entre o baixista e o teclista, um grupo de trinta a quarenta pessoas que saltaram de braços no ar grande parte do concerto. Que energia imparável, alimentada pelo estimulante motor das composições da banda, ou pelas prolongadas notas que Manel Cruz consegue suster com os seus pulmões sobre-humanos.
Quando a banda abandonou o palco pela primeira vez, ao final de dezasseis temas, o concerto ainda estava para durar. Um número de encores pode dizer muita coisa sobre o legado de uma banda; mais, do carinho mútuo entre artistas e plateia. E neste caso não foi apenas um. Também não foram apenas dois. Três encores, um total de mais oito ou nove canções após a primeira saída de palco. Espaço para temas mais curtos, mais antigos, e até para uma interpretação breve de “Chuva” que não estava sequer inscrita na setlist. Os Ornatos Violeta voltaram a fazer jus à sua bonita história. “Foi lindo, pessoal”, partilhou Manel Cruz, adornando essa partilha com uma ou outra palavra mais expressiva do nosso estimulante vocabulário, “Como se diz no norte!”. Foi uma noite em família alargada, que só vai deixar boas memórias. Até breve, Ornatos!