Os Suspeitos que querem fazer do indie costume
É desafiante tentar desprender o fator business da música. Nos dias de hoje, a ideia tão primária quanto simples de fazer música é desfocada pelo interesse lucrativo das editoras, pelos cachês com cada vez mais zeros, pelo acesso fácil a discografias inteiras potenciado pela Internet e pela austeridade crónica a que as artes parecem estar acorrentadas.
A Mr. November quer voltar a pôr o foco na música. A promotora do Porto nasceu há pouco menos de um ano, a partir de um grupo de amigos. O interesse financeiro na coisa é nulo: todos têm carreira feita. O que os move, então? “Move-nos a paixão pela música indie” – conta-nos José Carlos Soares, fundador da cooperativa –, essa que, recuando na linha do tempo, o levou a criar Os Suspeitos. Em 2016, um grupo fechado no Facebook que servia para partilhar nostalgias e novidades da música independente (“aquela que eu gosto de chamar ‘com caráter’”) é agora uma comunidade com mais de dois mil melómanos.
Em maio de 2018, os Suspeitos fundadores foram mais longe e, roubando o nome a uma letra dos The National, fundaram a promotora Mr. November, que, assegura José Carlos, não tem fins lucrativos: “se houver lucro, é aplicado no concerto seguinte”. A comunidade de ouvintes interessados passou ela própria a agente de divulgação musical. “No fundo, é uma oferta cultural que damos à cidade e que cumpre o nosso propósito de termos uma proximidade com as bandas. Passamos de amantes de música para estarmos dentro do palco”, explica José Carlos.
A aventura dos ”Suspeitos do Costume” pela indústria da música foi acolhida pelo Hard Club, que, desde setembro, deu palco aos concertos de Soft Science, The Saxophones, Holly Miranda e Holy Motors. Estas conquistas internacionais também servem o propósito primário de divulgar a música made in Portugal, ou “dar o empurrãozinho a tudo o que é uma sonoridade indie nacional”. As primeiras partes dos concertos foram sempre asseguradas por bandas portuguesas “que estão a começar” como os OZ, João Amorim, LINCE e Balter Youth.
Também no Hard Club estreou, no passado dia 2 de fevereiro, o Suspeitos.PT: um ciclo de mostras de música independente nacional, organizado pela Mr. November. A noite inaugural ficou a cargo de :papercutz, Birds Are Indie e Plastic People. “Pretende-se que o Suspeitos.PT não seja um mini-festival isolado, mas mais umas noites regulares”, quase que repetidas versões das reuniões do grupo de amigos à volta da música, só que numa das salas de concertos mais conceituadas do Porto.
O dia 2 de fevereiro fica na história da Mr. November: “é um dia emblemático” em que foi apresentado o site, “além de lançarmos a nossa primeira noite exclusivamente com bandas nacionais”. Segundo José Carlos, o que une :papercutz, Birds Are Indie e Plastic People – “nada inferiores às bandas que nos visitam” – é uma projeção internacional subestimada na cena indie portuguesa.
À porta da sala 2 do Hard Club ouvem-se conversas, copos e o som profundo e sensual de Sneaker Pimps, que cobre o ambiente. O concerto que está prestes a começar não foge muito da mesma descrição: ao sintetizador de Bruno Miguel junta-se a voz etérea de Catarina Miranda – vulgo Emmy Curl – para formar a pop eletrónica de :papercutz. O mestre do projeto mantém-se concentrado nos beats pulsantes, enquanto o corpo de Catarina materializa a voz que nos chega aos ouvidos com movimentos igualmente hipnotizantes. Talvez por isso o público pareça petrificado, mas logo a voz que os leva para uma dimensão fora daquelas quatro paredes se quebra num tom amigável e jovial que lhes pede para se chegarem “um bocadinho mais para a frente, por favor”. E se Maomé não vai à montanha, Catarina desce do palco para dançar com o público e até abençoá-lo: aproxima-se a dançar dos que, na orla da timidez, a ouvem, e, com uma tinta azul – do tom que traz vestido – marca-os com um sinal na testa.
Antes de “All of the Ways”, single do primeiro álbum desde a parceria com Catarina, Bruno põe em palavras o que já tínhamos indagado a partir da pluridade sonora de :papercutz: “somos duas pessoas no palco, mas gostamos de parecer mais que duas pessoas no palco”. Catarina e as suas várias vozes tomam conta dos primeiros segundos da faixa antes de Bruno entrar com a própria voz, coberta pelas teclas e o beat palpitante.
Os :papercutz pedem licença para fechar o concerto. Os copos vão-se acumulando, vazios, nas mesas que circundam a sala, enquanto quem os pousa vai antecipando o primeiro intervalo com conversas, como uma turma inquieta.
A espera por Birds Are Indie revela-se profícua, pois assim que a banda de Coimbra arranca, a conversa dá lugar à dança. O trio começou com o amor entre Joana Corker e Ricardo Jerónimo, a quem se juntou Henrique Toscano, resultando em dez anos de Birds Are Indie e já quatro álbuns. O último é do ano passado e, com música, produção e quase todos os intervenientes na sua criação sendo de Coimbra, só se poderia chamar Local Affairs. O concerto serve para divulgação do álbum, mas há espaço para canções mais antigas, apresentadas por histórias de Ricardo. “A Joana chegou a casa um dia a dizer que se tinha despedido. Eu disse-lhe que não se preocupasse, porque eu sabia três acordes – Lá, Sol e Ré. Quem daqui já se despediu?”. Metade da sala levanta o braço, entre sorrisos que não se sabem se tímidos ou destemidos. “É bom, não é? Esta é para vocês; peguem três acordes e sejam felizes”, diz Ricardo antes de partir para “High On Love Songs”.
A banda não perde uma oportunidade para conversar com o público, e até elogiá-lo: “vocês são o exemplo, pessoas que decidem levantar o rabo do sofá e sair numa noite de Inverno para vir ver um concerto ao vivo no Hard Club. Obrigado”. O agradecimento é retribuído quando do lado oposto ao palco se pede mais uma. “Na verdade são mais duas” antes do segundo intervalo.
A última, mas não menos importante, banda a subir ao palco, como o público já aceso poderia testemunhar, é Plastic People. O trio de Alcobaça faz-se acompanhar de mais três elementos para um set que percorre o seu álbum de estreia, Visions. O carismático vocalista João Gonçalo incorpora na performance um alter-ego de sotaque britânico que cai bem com o seu visual – um cruzamento não tão improvável assim entre Ian Curtis e Morrissey – e as guitarradas que garantiram a vitória do EDP Live Bands de 2017.
“Riding High on Acid” é, expectavelmente, a faixa que acelera o ritmo do público e que garante a João Tiago, atrás do sintetizador, uma bebida que do público lhe trazem, antes de arrancar com “Running”, a dar tempo para recuperar o fôlego. “Eu já vou aí abaixo dançar um bocadinho”, promete João Gonçalo, e cumpre no momento mais solto da noite em que o público já dança sem vergonha. Já no encore, repetem o single que “nunca tocaram” para acabar a noite em “acid, baby”.
Três concertos em três horas fizeram um primeiro Suspeitos.PT compacto e bem-sucedido. À saída, entre agradecimentos e uns quantos “parabéns, gostei muito”, falámos com Ricardo, dos Birds Are Indie: “gosto deste tipo de noites enquanto banda e enquanto público. As pessoas podem pausar entre as bandas, conversar e ver os discos, acho que há uma sensação mais comunitária”. O seu patriotismo transparece na reflexão do guitarrista sobre a cidade-berço d’Os Suspeitos: “o Porto é perfeito, só que não é Coimbra”. É também o Porto que ainda espera os ingleses Night Flowers e HAARM, os alemães Seasurfer, o projeto português Monday e todas as edições de Suspeitos.PT que hão-de vir por mão dos Mr. November.
Artigo da autoria de Inês Loureiro Pinto.