Para errar melhor: residências artísticas e apoio à criatividade

por Paulo Pires,    22 Julho, 2023
Para errar melhor: residências artísticas e apoio à criatividade
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Há em Portugal um ecossistema relevante e plural de residências artísticas e outros contextos/formatos de apoio à criação que importa preservar, apoiar, conectar, amplificar e difundir. 

Vivemos, neste pós-pandemia, um período de inegável vitalidade e prolixidade criativas em Portugal. Daí a importância de garantir tempo, espaços e contextos para as várias dimensões dos processos de inventividade: questionar, investigar, experimentar, partilhar. Para escavar o risco, para errar melhor. Como disse Herberto Helder, “é preciso cantar como se alguém soubesse como cantar” — para “queimar os lugares reticentes deste mundo”. 

Os últimos anos trouxeram consigo — não obstante esse movimento “colectivo” já existir antes, pela reiterada voz de produtores, agentes/promotores, criadores, intérpretes e técnicos — um olhar mais aturado, dignificante, proactivo e mobilizador em torno da temática da criação artística, das suas lógicas, ritmos e processos de trabalho, das condições e recursos necessários à sua concretização. Isso contribuiu até para um certo descentramento relativamente a uma tendência, ainda muito incrustada nas tessituras social e institucional, para, amiúde, se conferir maior valoração e destaque às componentes da programação e fruição culturais, colocando-se os holofotes na etapa final, no “cartaz”, no que é “mais visível”, no resultado palpável e concreto, na análise económica do custo-benefício, no balanço estatístico da adesão de públicos. 

A este cenário não é alheia, assim, num plano mais macro, uma dominante lógica de mercado que, numa espécie de círculo vicioso, tende a (sobre)valorizar a paragem final, o impacto mediático, a energia promocional, a rentabilidade monetária — em suma, um produto identificado, materializado, finalizado e pronto a consumir. Aliás, nos planos ideológico-económico é notória a pressão, à escala global, para produzir em quantidades massivas (em menos tempo), para acelerar processos e encurtar caminhos, estando igualmente instalada uma necessidade, como que tácita, de “validação” formal de projectos através da atribuição de apoio financeiro e/ou da sua inclusão em dinâmicas programáticas institucionais que, de alguma forma, os “legitimem”. Perpassando diversos quadrantes da sociedade, estes fenómenos estendem-se também, directa e indirectamente, ao universo cultural e artístico, relegando, não poucas vezes, para um plano secundário etapas essenciais (de cariz preparatório) dos processos criativos, como o pensamento, a pesquisa, a experimentação, a especulação, a partilha.

Essa enraizada visão deve-se também ao facto de o acto criativo — esse cativante cruzamento entre curiosidade e imaginação — constituir uma etapa (por “inerência”) menos mensurável e óbvia, menos linear, mais silenciosa e invisível, mais lentificada, não necessariamente sequencial e consequente, sem modus operandi predefinido, amiúde propensa a erros e falhas. E isso ainda parece intrigar, causar estranheza, perturbar. 

Torna-se urgente (continuar a) desconstruir certa conotação negativa ou cepticismo ainda associados, aqui e ali, à criatividade (mormente artística), à atitude criativa, ao perfil criativo. O processo de criação é feito de avanços e recuos, numa dinâmica iterativa, assentando na tentativa de aclarar o desconhecido e na reiterada testagem de possibilidades e recombinações, visando expansão, complexificação, descoberta contínua. Um percurso não poucas vezes marcado por falta de clareza, dispersão, limbos, vazios, dúvidas, indefinições e por “processos caóticos” como mecanismos essenciais à activação do pensamento criativo.

É preciso, assim, valorizar mais o trabalho de bastidores que subjaz ao acto criativo, mesmo aquele — veja-se quão desafiante e inquietante se pode afigurar esta ideia face a percepções mais convencionais e tradicionalistas — que não desemboque necessariamente ou desde logo numa apresentação pública, numa itinerância, numa edição, numa produção visual ou noutra forma mais habitual e expectável de exteriorização. E isso também passa por associar, de forma generalizada, um suporte financeiro ao labor de cariz profissional realizado em contextos de residência artística e noutros espaços de suporte à criação. O trabalho artístico deve ser remunerado em todas as suas etapas, não devendo ser um refém absoluto das questões do ritmo temporal de produção nem de escalas quantitativo-estatísticas de produtividade. 

Em Portugal, no que se refere à urdidura dos processos criativos no campo das artes, é possível, desde logo, concluir que as estruturas culturais independentes — de escalas, recursos e estruturações muito diversos — têm desempenhado um papel fundamental na dinamização de residências artísticas e de outras modalidades de apoio à criação. Trata-se de associações, cooperativas, grupos informais e outros colectivos, disseminados por vários pontos do país, que, em geral, detêm financiamento público (através da tutela da Cultura, autarquias, fundos comunitários) e/ou beneficiam de programas de apoio emanados de instituições privadas de referência de âmbito nacional, e/ou são abrangidos por mecenato e patrocínio.

Neste ecossistema cultural e artístico independente ligado ao apoio à criação — e a título de exemplo, sem pretensões de demasiada exaustividade —, inscrevem-se, entre outras, estruturas como O Espaço do Tempo e as Oficinas do Convento (Montemor-o-Novo), o DeVIR CAPa (Faro), a Largo Residências, a ZDB e o Hangar (as três de Lisboa), a Casa da Esquina, o Jazz ao Centro Clube e a Blue House (todas de Coimbra), a Circolando/CRL – Central Elétrica e a Sekoia – Artes Performativas (ambas do Porto), a Ccer Mais (Leiria), a Estufa/Moagem (Torres Vedras), a Casa de Mateus/Escola das Transições (Vila Real), a ZONA (Lamego), as Comédias do Minho (Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira) ou a Anda&Fala/vaga (Ponta Delgada). 

Mas também poderíamos elencar — pluralizando e também alargando geograficamente mais este corpus — a Companhia da Chanca (Penela), a Lavrar o Mar (eixo Monchique-Aljezur), a Inestética/Palácio do Sobralinho (Vila Franca de Xira), a Luzlinar (Trancoso), o LAC – Laboratório de Actividades Criativas (Lagos), a Binaural Nodar (Vouzela), a Cultivamos Cultura (Odemira), a Córtex Frontal (Arraiolos), a Porta33 (Funchal), a Pó de Vir a Ser (Évora), a RAMA (Maceira e Alfeiria, Torres Vedras), a Lugar do Meio (Alfafar, Penela) ou a AADK Portugal/The Plot (Azeitão, Setúbal), só para citar alguns casos. 

Estas entidades têm vindo a afirmar-se, entre outras valências, como laboratórios permanentes que apostam na experimentação, na partilha e na relação crítica num propósito de produção artística nas áreas das artes performativas, visuais e no cruzamento disciplinar. São estruturas de pensamento-acção que equacionam diversos níveis de entendimento com os criadores que acolhem: nos avanços intelectuais, nas relações humanas e nas possibilidades de criação artística. 

Casos como o d’O Espaço do Tempo personificam já uma máquina de apoio muito afinada e estruturada, que passa por modalidades mais densificadas e robustas do ponto de vista das condições logísticas/técnicas e recursos financeiros disponíveis, prevendo co-produções e bolsas de criação (3.ª edição em 2022, com o suporte do BPI e da Fundação “la Caixa”), residências em parceria com outras entidades, artistas associados periodicamente à estrutura e ainda projectos específicos, como o “CASA” (já em 2.ª edição), que consiste num programa de apoio à criação artística dinamizado em rede entre o Espaço do Tempo, o Centro Cultural Vila Flor (Guimarães) e o Cineteatro Louletano (Loulé). 

A disponibilização de espaço(s) de trabalho, o alojamento da equipa, o suporte (total ou parcial) à alimentação e às deslocações em território nacional, bem como o apoio à difusão dos projectos criativos desenvolvidos em residência quando se realizam ensaios abertos ou ante-estreias, constituem o receituário mais habitual em termos de modus operandi das entidades supra-citadas, havendo depois ajustamentos e adaptações (e algumas inovações) em função dos seus espaços e orçamentos associados a esta vertente de intervenção. 

A nível das residências, em geral estas entidades costumam adoptar duas (ou apenas uma) modalidades de captação de criadores: através de candidaturas espontâneas (reservas directas de espaços), sujeitas a aprovação; e por convite e convocatória aberta (open call), com selecção por um júri. Determinadas estruturas prevêm ainda residências permanentes, bem como alojamentos criativos e residências em trânsito, para além de residências à distância, em modo virtual. Entidades como, por exemplo, a associação Cultivamos Cultura — plataforma independente, sediada no Alentejo litoral, para a experimentação e o desenvolvimento de conhecimento partilhado em torno da triangulação ciência-tecnologia-arte contemporânea — privilegiam ainda, para além das habituais residências de produção (que neste caso podem ir até quatro meses), a realização de residências especiais em que, a partir de uma temática-desafio lançado pela direcção artística da estrutura, são convidados grupos de criadores para projectos específicos a implementar localmente. 

Uma alusão agora a outra tipologia muito pertinente de apoio (indirecto e preambular, se se quiser) à criação: a dinamização de residências de conhecimento. Trata-se de uma modalidade com pouca tradição e disseminação em Portugal, mas essencial para o incremento, estímulo e renovação da massa crítica no seio do meio cultural. Estas residências visam a aglutinação de um núcleo circunscrito de profissionais (artistas, curadores, investigadores e outros), oriundos de vários quadrantes do saber/disciplinas, para, durante um período temporal intensivo e concentrado — e numa lógica de funcionamento horizontalizada —, investigar, reflectir, questionar e problematizar em torno de tópicos ligados à criatividade e aos processos inventivos, ou a outra(s) temática(s) proposta(s). 

Para além deste paradigma funcional, existem outros modelos de residências que colocam a tónica na formação/qualificação, em modelos verticais, de modo a capacitar os seus participantes para o desenvolvimento de competências em diferentes áreas criativas, estimulando-se uma cultura de aprendizagem, o pensamento, a experimentação e a inovação através da partilha de práticas e conhecimento e da realização de acções interdisciplinares. Este formato prevê, em regra, a disponibilização de mentorias e tutorias artísticas para os participantes nas residências. 

Há, assim, casos de estruturas (como, por exemplo, a RAMA, sediada em duas aldeias do concelho de Torres Vedras) que, além do seu programa geral de residências artísticas — em que existe uma mentoria quotidiana próxima e um posicionamento crítico em relação ao projecto artístico em causa, com vista não apenas ao seu enriquecimento, mas, igualmente, às suas possibilidades de produção —, dispõem, ao mesmo tempo, de um programa externo de acompanhamento de propostas criativas, o qual não prevê a ocupação de espaços. Essa valência centra-se numa tutoria e consultoria personalizadas para cada projecto, com studio visits, discussão de trabalho e apoio ao projecto nas suas várias etapas, em encontros organizados juntamente com artistas em residência e convidados. 

Justifica-se igualmente uma referência a algumas entidades independentes (já citadas), que, instaladas em contextos rurais e, não poucas vezes, em territórios de baixa densidade cultural, têm vindo a ganhar, pelas suas escalas, focos e lógicas de intervenção específicos, um papel cada vez mais pertinente no apoio às áreas da investigação, experimentação e criação, sendo um segmento em paulatino crescimento. É o caso de estruturas culturais como a Luzlinar, a Binaural Nodar, a Lavrar o Mar, a Companhia da Chanca, a Córtex Frontal, a Lugar do Meio ou a AADK Portugal — esta última uma extensão, sediada em Azeitão/Setúbal, de uma plataforma artística internacional criada em Berlim por um colectivo de três criadores (entre eles, uma portuguesa) com o objectivo de estabelecer relações entre criação, curadoria e recepção de arte contemporânea.

Estas entidades em particular revelam, no seu ADN, três traços essenciais que se reflectem depois nas suas práticas de suporte à criatividade artística: apostam numa filosofia identitária, organizacional e funcional que estabelece estreitas pontes entre arte, território e ambiente, que procura ideias para a sustentabilidade, a ecologia e o equilíbrio entre os sistemas, que valoriza a imersão na paisagem, a sensorialidade, uma “performatividade mais orgânica” e (re)conectada com a natureza; inscrevem-se em micro e médias escalas que potenciam a informalidade, a adaptabilidade, a proximidade, a empatia e a confiança mútua entre os seus players; e privilegiam, com maior incidência, a relação dos criadores com a comunidade local e o território, a cultura, os ofícios e os saberes tradicionais, a história e a paisagem da região. 

Uma nota para um projecto cultural único e inovador, de iniciativa religiosa, em Portugal: o Seminário Maior de Coimbra. Este equipamento, datado de 1765, tem vindo a ser alvo, nos últimos anos, de uma visível revitalização patrimonial e funcional, ancorada também numa (re)conexão entre cultura/artes, património e espiritualidade. Além da aposta no segmento do turismo espiritual, o singular espaço, que é Monumento Nacional desde 2021, prevê o apoio à realização de residências artísticas que visam o desenvolvimento de processos criativos em múltiplas áreas, dispondo de condições privilegiadas para o efeito: alojamento, alimentação, espaços de pesquisa e experimentação, articulação com a natureza, contextos para apresentação pública, ligação ao território e ao ecossistema cultural e criativo local. 

Outra abordagem a destacar é a do Leirena Teatro, companhia profissional de Leiria, que em final de 2021 lançou, em parceria com a Nerlei (Associação Empresarial da Região de Leiria), o projecto “Manufactura”, um programa de residências artísticas performativas que pretende aproximar o mundo empresarial das artes fomentando também as práticas (ainda exíguas e pouco generalizadas em Portugal) de mecenato cultural. Após uma open call e selecção prévias dos artistas/companhias a integrar o projecto, as residências criativas são desenvolvidas em contextos empresariais e podem, inclusive, envolver funcionários e dirigentes, enfocando artisticamente em identidades e temáticas ligadas a essas estruturas económicas. 

Os festivais, plataformas e encontros-âncora de artes performativas/visuais e cruzamento disciplinar também têm desempenhado um papel relevante no apoio à criação, incluindo nas suas programações quer residências artísticas em curso, quer o resultado final de trabalhos de pesquisa e experimentação criativas encetados em fases anteriores aos eventos, por vezes em regime de residências em parceria com outras estruturas programadoras. Eventos como, entre outros, o Laboratório e Festival Linha de Fuga (Coimbra), o Festival Materiais Diversos (Minde-Alcanena-Cartaxo), o Citemor (Montemor-o-Velho), o Planalto – Festival das Artes (Moimenta da Beira), o Festival Som Riscado (Loulé), o Walk&Talk (Ponta Delgada, São Miguel), o Futurama/Bienal BoCA (Beja, Serpa, Mértola e Castro Verde), o Verão Azul (Lagos e Loulé), o Jardins Efémeros (Viseu), o Lisboa Soa (Lisboa) ou o Semibreve (Braga) são apenas alguns dos exemplos elencáveis. 

Um outro universo igualmente em crescimento, a ritmo moderado, tem a ver com entidades privadas de cariz empresarial, mormente sitas em zonas consideradas “periféricas”, cujo principal core é o turismo de habitação e o ecoturismo (lazer em espaço natural), mas que apresentam, a título complementar, uma interface cultural que consiste na disponibilização de espaços para a realização de residências artísticas (com ou sem – conforme os casos – acompanhamento artístico especializado por parte da entidade de acolhimento). Neste segmento inscrevem-se espaços como As Casas do Visconde (Canas de Senhorim, Nelas) – onde está sediada a associação artística Amarelo Silvestre –, a Cerdeira – Home for Creativity (Lousã), o complexo Melides Art (Melides, Grândola), o projecto Campilhas Internacional (Santiago do Cacém), ligado à estrutura artística portuense Mala Voadora, ou a Companhia das Culturas (Castro Marim), estrutura de ecoturismo sustentável e orgânico que dinamiza regularmente “viveiros do fazer e do pensar”, aglutinando artistas, filósofos, cientistas e agricultores em comunidades informais de pensamento e acção. 

Poderia ainda acrescentar-se a este corpus o exemplo da Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, uma sociedade agrícola que, inspirada na essência do montado, promove um espaço de cooperação, inclusão, desenvolvimento pessoal, trabalho e construção de comunidade em pleno nordeste alentejano, a qual contempla igualmente a realização de residências artísticas e de outros formatos de reflexão-pesquisa-experimentação em torno do eixo arte-ambiente e das temáticas da agroecologia, biodiversidade, sustentabilidade e regeneração florestal.

Outros contextos há ainda no universo empresarial da hotelaria e do turismo de habitação que, pelo seu conceito e target, contemplam recursos espaciais e logísticos para o desenvolvimento de práticas de criação artística (uma espécie de “temporadas criativas em ambiente intimista”), em regra em moldes menos estruturados e formalizados, e sem acompanhamento e facilitação técnicos. Estes ambientes informais são, à sua maneira, igualmente importantes para o estímulo e florescimento da criatividade. 

Ao mesmo tempo, assiste-se, gradualmente, a um maior incremento da iniciativa pública, mormente autárquica, no tocante ao surgimento de centros de residência artística e de outros espaços de trabalho de suporte à criatividade com epicentro em equipamentos municipais. Ainda assim, constata-se que a sua expressão e lastro efectivos, são, por enquanto, ainda bastante menores do que os das (análogas) dinâmicas independentes já referenciadas. O panorama nacional revela, neste âmbito, lógicas, escalas e recursos heterogéneos (inclusive em termos de respaldo financeiro alocado a este fim), com níveis diversos de “musculação” e consolidação estruturais por parte das instituições municipais.

Nesse universo contam-se, entre outros exemplos: o Campus Paulo Cunha e Silva (Porto); o projecto 23 Milhas (Ílhavo); o gnration (Braga); a Fábrica da Criatividade (Castelo Branco); o Pólo Cultural Gaivotas (Lisboa); os Estúdios Victor Córdon (Lisboa); o Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas (Ribeira Grande, S. Miguel, Açores); A Gráfica – Centro de Criação Artística (Setúbal); o Centro de Criação de Candoso (Guimarães); o Cineteatro Louletano/Loulé Criativo (Loulé); o Centro de Experimentação Artística do Vale da Amoreira (Moita); ou a Casa Varela – Centro de Experimentação Artística (Pombal). 

Além da sua função primacial, as residências artísticas permitem ainda quatro acções paralelas relevantes: um mapeamento indirecto do tecido artístico; um incremento da atractividade do território para criadores exógenos (mais ou menos emergentes, mais ou menos consolidados), no sentido de estes poderem vir a instalar-se no mesmo, de modo mais permanente ou periódico, e a densificar a sua relação com esse ecossistema; uma articulação com a dimensão programática no sentido da futura integração dessas dinâmicas criativas em actividades encetadas pela entidade que acolhe a residência; e um aprofundamento do trabalho de mediação cultural e artística através do envolvimento de públicos.

No plano governamental, no que concerne à Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP), o seu programa de apoio financeiro à programação prevê a valorização da inclusão de residências artísticas, de acções estratégicas de mediação e de co-produções originais nos planos dos equipamentos culturais que estão a ser apoiados, o que também contribuirá para uma maior aposta nos processos de pesquisa, experimentação e partilha por parte dos espaços regulares de programação.

Seria também importante, por parte da tutela da cultura — para um conhecimento mais panorâmico e detalhado por parte do sector artístico; e como suporte para futuras políticas públicas —, a realização, via OPAC (Observatório Português das Actividades Culturais), de um mapeamento nacional rigoroso e actualizado de estruturas e contextos culturais, de âmbito quer público quer independente/empresarial, que, de modo assumido, permanente e em moldes mais estruturados ou a título mais informal, apresentam uma valência específica de residência artística. 

A existência de um ecossistema robusto e comunicante de espaços adequados para apoio à criatividade (quer de iniciativa independente quer pública), bem como de um eventual programa estatal de apoio especificamente dedicado a estes contextos — somando-se uma mais fecunda articulação estratégica dos mesmos com estruturas de programação cultural —, permitirá também que os processos criativos possam apresentar, tendencialmente, maiores níveis de consistência, diferenciação, qualidade e impacto artísticos. 

A criatividade pode ser esse lugar onde ninguém jamais esteve, em que a criação é um modo de matar a morte. Precisamos de pontos de exclamação na existência, os quais nascem amiúde de momentos em que se vê o já antes visto num outro sítio, num sítio errado, numa dialéctica para a qual são convocados o susto, o espanto e uma certa capacidade para desenvolver um erro até ao seu limite. 

Nikos Kazantzakis, escritor grego, costumava dizer que, ao acreditar apaixonadamente em algo que ainda não existe, nós criamo-lo, pois, segundo ele, o não-existente é qualquer coisa que nós ainda não desejamos o suficiente. Vivemos um tempo de reconstrução e de oportunidades, em que fermenta uma explosão criativa (que sempre foi e) é fundamental enquanto máquina de guerra contra a banalidade, a homogeneização e o nivelamento, isto em prol de narrativas próprias, vozes singulares, dinâmicas disruptivas. 

O ponto de partida é, muitas vezes, um corajoso e assumido elogio do “não sei” e um enfoque na pergunta e no processo (mais do que na resposta e na paragem final), os quais serão, na minha óptica, das formas mais criativas e desconcertantes de desenhar o tempo e de vitalizar a arte. Precisamos de insistir e persistir na apologia das subjectividades e da diversidade, numa maior atenção ao sensível e numa primazia conferida ao risco e suas múltiplas tonalidades como possibilidades de amanhã

Segundo um biógrafo seu, no leito de morte Gertrude Stein, escritora e poeta norte-americana, terá erguido a cabeça e perguntado: “Qual é a resposta?”. Como ninguém reagiu, ela sorriu e disse: “Nesse caso, qual é a pergunta?” Não restam muitas dúvidas de que a curiosidade e a imaginação são instrumentos de sobrevivência: imaginamos para existir e os actos interrogativo e criativo elevam-nos. Só assim alcançaremos esse fito maior de plantar a invisibilidade, muitas vezes sem a certeza de chegarmos a ver os frutos dessa sementeira. 

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