Para o coração, a vida é simples

por Cláudia Lucas Chéu,    10 Maio, 2020
Para o coração, a vida é simples
Fotografia de John Simitopoulos / Unsplash
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Nas primeiras páginas do livro A Morte do Pai, de Karl Ove Knausgård (o primeiro livro de A Minha Luta, obra composta por seis volumes e editada em Portugal pela Relógio D’Água), pode ler-se: “se o teu pai falecer no jardim num ventoso domingo de Outono, vais carregá-lo para dentro de casa; se não for possível, pelo menos vais cobri-lo com uma manta. Mas este impulso não é o único que temos em relação aos mortos. Não menos evidente do que o impulso de ocultarmos os corpos, é o facto de os colocarmos sempre ao nível do solo o mais rapidamente possível. É quase inconcebível um hospital que transporte os seus mortos para cima, que coloque as suas salas de autópsia e de cadáveres nos andares mais altos. Os mortos são colocados o mais perto possível do solo. E aplica-se o mesmo princípio a quem cuida deles; uma companhia de seguros pode muito bem ter as suas instalações no oitavo andar, mas não uma funerária.”

Nas últimas semanas, tenho recordado o início desta obra do escritor norueguês, por se tratar de uma reflexão lúcida sobre a forma como lidamos com a morte e sobre a dificuldade que temos em encarar cadáveres. Se sempre tivemos receio de confrontar os corpos sem vida, tendo organizado a sociedade de forma a só sermos confrontados pelo período mais breve possível e apenas quando estritamente necessário, agora, nas circunstâncias da pandemia, a morte passou a ser uma abstracção por completo. Recebemos números compridos através das notícias, mas não sabemos quem morre nem vemos funerais nem as pessoas que sofreram as perdas. Quem perde familiares próximos não pode assistir aos funerais nem receber um abraço de apaziguamento. Tudo parece estar a ser tratado de forma objectiva, racional, longe da vista e longe do coração; como se houvesse um modo higiénico de lidar com o assunto.

Se não estamos preparados (e talvez nunca estejamos) para lidar com o cadáver de alguém que nos é querido, os estragos emocionais que advêm por não se poder fazer uma despedida, por mais breve que seja, ou um ritual fúnebre onde sentimos pelo menos o apoio e a cumplicidade de quem fica e também se encontra num estado de sofrimento, somos então obrigados a concretizar o vazio repentino e a ter de passar pela dor incomensurável da incompreensão.

Nunca compreenderemos a morte, é certo. O ser humano nunca estará preparado. Para Schopenhauer, por exemplo, o medo da morte não é causado pelo fim da vida, mas sim pela destruição do nosso organismo. Segundo o filósofo alemão do século XIX, os seres dão mais atenção ao corpo do que à essência e, por isso, vivem angustiados perante a morte. Há muito que a Ocidente vivemos estritamente focados na existência dos corpos; a essência, ou como os antigos lhe chamam, a alma, é algo desconsiderado pela maioria. Perder alguém, ou falar em números de mortos sem termos a noção dos corpos, é para nós algo absolutamente abstracto e asséptico, uma vez que o corpo é tudo o que temos como certo.

O actual dilema 一 que é uma espécie de revisitação ao século XIV e à peste bubónica, que dizimou entre um terço a metade da população portuguesa 一, é encontrarmo-nos sem uma solução menos má (não há nenhuma boa). Se, por um lado, 一 criámos há muito um esquema social onde evitamos o confronto físico com os mortos dos outros, e condicionamos a presença dos nossos ao período mais breve possível, por outro, perdemos totalmente o acesso a uma despedida digna. Tanto na vida como na morte somos obrigados a aguentar sem ver. Não há alternativa.

Para quem fica, cabe ficar rente ao chão, com o luto por fazer e a dor distendida para a vida inteira; para quem parte, relembro novamente as palavras de Karl Ove Knausgård: “Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois pára.”

Crónica de Cláudia Lucas Chéu
Escritora, poeta e dramaturga. Escreve contos semanalmente para o Jornal Público. Colaborou com as revistas Vogue, Elle, NIT, Gerador, entre outras. Tem publicados os textos para cena Poltrona – monólogo para uma mulher; Glória ou como Penélope Morreu de Tédio, pelas edições Bicho-do-Mato/ Teatro Nacional D. Maria II; A Cabeça Muda, pela Cama de Gato Edições; Veneno (Coleção Curtas da Nova Dramaturgia – Memória), Edições Guilhotina, 2015. Em prosa poética, publicou o livro Nojo, (não) edições. E em poesia, o livro Trespasse, Edições Guilhotina, 2014 e Pornographia, Editora Labirinto, 2016. Em 2017, foi publicado o seu livro Ratazanas (poesia), pela Selo Demónio Negro, em São Paulo (Brasil). Publicou, em 2018, o seu primeiro romance Aqueles Que Vão Morrer, Editora Labirinto, e Beber Pela Garrafa (poesia), pela Companhia das Ilhas. Acaba de lançar os livros A Mulher-Bala e outros contos, Editora Labirinto (2019); Confissão (poesia), Companhia das Ilhas, 2020.

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