Perdemo-nos em ‘Sung Tongs’, guiados pelos Animal Collective no Capitólio
Quando uma banda se dispõe a tocar um álbum na íntegra num concerto ao vivo, está a ser testemunha da importância de um formato que muitos julgavam condenado. Quando esse se torna o mote de uma digressão, ainda mais. E, pormenores não menos importantes: Sung Tongs não celebra em 2018 nenhum aniversário redondo (são 14 anos), nem é o álbum definidor da carreira da banda. Os Animal Collective decidiram tocar o Sung Tongs porque lhes apeteceu, lhes pareceu certo, lhes pareceu bom. E isso é motivo mais que suficiente.
Lisboa teve a sorte de ser uma das únicas nove cidades europeias escolhidas para ouvir este raro acontecimento. Talvez um dos motivos de peso tenha sido a proximidade de Noah Lennox (Panda Bear), habitante de uma das sete colinas desde há coisa de uma década. O músico é uma das partes do duo original da gravação do disco, em Setembro de 2003 (viria a ser lançado em Maio do ano seguinte); e a tour não acrescenta mais ninguém em cima do palco. São apenas eles, o núcleo duro dos Animal Collective – Avey Tare e Panda Bear.
O palco do Capitólio é ladeado de duas enormes faixas de pano: padrões coloridos e psicadélicos impressos sobre branco, ora iluminados de frente ora de trás, criando um efeito próximo de vitral. No do lado esquerdo, vemos duas meninas, de braços erguidos – no do direito, os seus esqueletos, envergando a mesma posição. Não cremos que haja um sentido que justifique estas representações. Sung Tongs é acima de tudo um álbum em que temos livre permissão para nos perdermos, vaguearmos por estranhas florestas e caminhos inexplorados. Numa carreira marcada pelas experiências sonoras, Sung Tongs é talvez o mais experimental de todos (isto é, exceptuando Danse Manatee, Campfire Songs, trabalhos de categoria própria, sem terem a mesma ambição de fazer convergir sonoridades abstractas com melodias que entrem no ouvido).
Avey Tare e Panda Bear não regressam ao álbum com uma atitude mais solta, pop, do que na sua gravação original – o que poderia ter acontecido, depois de os seus últimos trabalhos ao serviço do colectivo terem apostado em cadências mais alegres, de electrónica luminosa. Não. Voltam aos temas de 2005 com uma concentração olímpica, lado a lado, passando a grande maioria do espectáculo de olhos fechados, nunca se olhando entre si e poucas vezes olhando para o que quer que seja. Estão perdidos no meio da música, e querem conduzir-nos nesta viagem.
Não é fácil acompanhá-los, embora as canções se reduzam ao seu essencial. Duas guitarras, alguns efeitos vocais, mas acima de tudo uma noção de performance focada e ambiciosa, de construção e descoberta constantes. Sente-se solenidade em cima do palco, e isso transmite-se para o público, que escuta sereno e atento as dinâmicas propostas pelo duo. No meio do caos, injectando valor na falta propositada de sincronismo, os Animal Collective – após uma canção introdutória que se estende ao longo de quase dez minutos, com poucas variações – interpretam o álbum do princípio ao fim, por ordem. No final, Avey diz: “E foi isto: Sung Tongs“:
O ambiente que se vive é de embalo, na maior parte do espectáculo. O Capitólio, esgotado, balança-se de um lado para o outro. Nos seus momentos mais expansivos, Sung Tongs está próximo da energia que Feels (editado um ano e meio depois) viria a consagrar definitivamente: e são esses laivos de energia que mais faíscas libertam, põem gente a saltar. Próximo de onde estamos, podemos ver pessoas a quem as canções muito dizem. Reacções físicas, mãos que se juntam, braços que se esticam – um álbum que se entrelaça com a vida, subitamente trazido à actualidade, provando que a música (sendo intemporal) se interliga com o tempo, e volta a fazer sentido, de maneiras diferentes, a cada instante. É isso que faz dela um acto tão humano.
É talvez por isso que não nos julgamos qualificados a adjectivar como longo ou demasiado lento o concerto que os Animal Collective entregaram, de forma tão generosa, aos ouvidos de tantas pessoas na noite de 21 de Junho. As modulações vocais imprevisíveis de ambos os músicos (mas principalmente de Avey, força da natureza, cujos gritos ocasionais repescam uma ancestralidade tão coadunada com as paisagens do álbum), o frenético ritmo que pescam nas cordas das guitarras, e os olhos fechados e caretas que são expressão do acto de criação dedicada; tudo isto tem o condão de imprimir valor numa performance que, analisada a frio, poderia ter parecido algo dispersa e prolongada.
Como nos caminhos labirínticos da floresta, nem todos os troços nos deram coisas boas, e a dificuldade de fruição tem sabor a desafio – o que esperávamos dos Animal Collective, se não isso? Os arranjos são inevitavelmente diferentes dos originais – e talvez não tão inspirados – mas revelam uma compreensão nova, como se os temas fossem mastigados à luz de novos propósitos. Por isso foi bom perdermo-nos em Sung Tongs. Nem todas as coisas existem para serem compreendidas.