Podemos continuar a ler “Os Maias” mas querem apagar-nos parte da História
Nas novas directrizes de aprendizagem para o programa do ensino secundário foram noticiadas várias novidades que causam já grande polémica na esfera pública, como seria de esperar. Um título sensacionalista e que esconde parte da verdade anuncia esta manhã que “Os Maias”, de Eça de Queirós, iria deixar de ser de leitura obrigatória, assim como “A Ilustre Casa de Ramires”. Se a segunda obra não causou grande celeuma, pelo menos nas redes sociais e comentários públicos à notícia, já “Os Maias” levaram a várias tomadas de posição devido à importância histórica da obra na nossa cultura e, por conseguinte, na importância que sempre representou no ensino secundário e, especialmente, na introdução à literatura portuguesa.
No entanto, ao contrário do que se dá a entender pela leitura dos afamados títulos em letras gordas, esta medida já estava aplicada em 230 escolas do projecto-piloto de flexibilidade curricular e passa agora a ser aplicada de forma geral nos anos iniciais de cada ciclo — ou seja, no 1.º, 5.º, 7.º e 10.º ano -, as obras não deixam de continuar a poder ser estudadas. Como descreve a presidente da Associação de Professores de Português (APP), Filomena Viegas, aos meios de comunicação, “há uma diminuição das obras propostas para leitura, que coexiste com o alargamento das opções que podem ser tomadas pelos professores”. Desconstruindo, “Os Maias” e “A Ilustre Casa de Ramires” continuam a poder ser sugeridas pelos professores, apenas deixam de ser obrigatórias. Ao invés dessa obrigatoriedade pelas obras, os professores/alunos têm assim a liberdade de escolher outra obra de Eça de Queirós.
O Ministério da Educação revelou em relação a este assunto que “a avaliação da educação literária terá em conta o conhecimento dos autores e movimentos literários, o que pode ser aferido com base em leituras diferenciadas”. Nada que pareça trágico, portanto. “Os Maias”, obra histórica mas que era já sistematicamente alvo de brincadeira generalizada pela quantidade de resumos a que deu origem, como forma de fugir à sua leitura, deixa de ser obrigatória, mas não quer dizer que não seja dada. Mais que isso, a retirada da sua obrigatoriedade e abordagem de outras obras de Eça pode até levar a que a falta de instrumentos auxiliares à não leitura de outras obras do autor faça com que algumas delas sejam de facto lidas, reforçando o que refere o Ministério sobre o resultado que se pretende: conhecimento do autor e movimento literário respectivo.
Mais censurável, e curiosamente algo que parece ter ficado para segundo plano, é a reorganização curricular feita à disciplina de História. No 10.º ano, por exemplo, desaparece agora o conceito de direitos humanos. Não haverá nada mais alarmante na Educação de uma sociedade futura em que no presente da mesma se enfrenta uma grave crise de valores e ética, resultado de um cada vez maior desconhecimento e alienação sobre princípios e direitos básicos e essenciais que nos guiam a nós, seres humanos, enquanto indivíduos e perante as nossas relações que estabelecemos com os outros integrados naquilo a que chamamos Sociedade. A retirada do conceito acompanha essa mesma crise, e acompanha ainda de forma mais grave a falta de vontade, noção e de capacidade de quem nos governa para reavivar esses valores, abrindo ainda mais essa ferida e colocando inclusive a questão a nu: quererá, quem nos governa, fazer sequer algo nesse sentido?
Delineados que estavam os direitos humanos mais básicos, nasceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Declaração que – a título de curiosidade – os EUA não aceitam, apesar desta ter sido em grande parte iniciativa de Eleanor Roosevelt), base daquilo que deve ser um Estado de Direito pelo qual nos devemos reger, garantindo no mesmo os direitos mais fundamentais à nossa existência.
É também na disciplina de História que surge outra (drástica) medida. Continuando na senda do uso da borracha de apagar, o Ministério decidiu também retirar no mesmo ano letivo mas no capítulo da Idade Média a “dimensão cultural (arte gótica, religiosidade, ordens mendicantes e confrarias, escolas, universidades, …)”. Se no caso do Eça se mantém a obrigatoriedade por uma obra sua, levando a um conhecimento (ainda que menor, porventura) do autor e do movimento literário de que faz parte, nestes dois casos não há, ou desconhece-se, de onde salvamos ou retiramos o conteúdo perdido.
Num sistema de ensino cada vez mais formatado, com sobrecarga de horários e construído apenas com o propósito dos alunos passarem em exame e se pense que isso é sinónimo de aprendizagem ou sequer de conhecimento adquirido, descurando ano após ano a importância do aspecto criativo, das artes e da paixão criada por estes aspectos – ao contrário das boas condutas já criadas e que se querem reforçar em alguns sistemas de ensino, nomeadamente no Norte da Europa –, e sobretudo daquilo que nos forma enquanto seres humanos, seres que coexistem em sociedade, num colectivo que deve assentar no conhecimento e aquisição de valores que nos permitam viver correctamente nesse âmbito, e para o qual a História é ainda a única disciplina que temos que nos ensina sobre os erros cometidos no passado. É precisamente essa disciplina à qual queremos retirar mais conteúdo.
Eça de Queirós fica, mas quem nos salva do desconhecimento sobre o nosso passado?