Podemos ser castiços e modernos?

por Miguel Peres,    6 Agosto, 2019
Podemos ser castiços e modernos?
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A questão (ou será uma não-questão?) é o ponto de partida para falar sobre o paradoxo que é manter uma identidade cultural apreciada por nós e pelos turistas, mas ao mesmo tempo a vontade de se desconstruir uma imagem antiquada do Portugal rural que se propagou um pouco por todo o mundo antes dos anos 80.

Comecemos pela definição formal de castiço, uma palavra que curiosamente é castelhana, mas que acolhemos como parte integrante da identidade portuguesa. O que encontramos é “puro”, de “boa casta” ou, na sua forma coloquial, “engraçado” e “peculiar, que tem características únicas”. Fora das preceitos, aproximo-me mais desta última forma, porque para mim “castiço” transporta-me para uma certa (in)genuinidade portuguesa, uma correspondência a uma pessoa que mantém uma ligação com a ruralidade do nosso país, que recupera uma nostalgia das muitas infâncias nossas nas terras dos avós, seja através da gastronomia, da linguagem usada, do humor na ponta da língua e até no próprio ambiente que cria seja em que lugar for. É, apesar de tudo, diferente do que considero um bairrista. Ou melhor, diria que um castiço é o barrista urbano.

Esta definição de castiço (reforço, a minha definição) traz consigo um imaginário cultural mais associado às festas da aldeia, da música popular portuguesa, das patuscadas entre amigos e família, da sabedoria que não se ensina nas escolas, mas sim passada entre gerações. Este conceito específico resulta com a junção destes elementos todos que, atrevo-me a dizer, faz de nós em parte, portugueses. É, aliás, usado e potenciado pelas principais marcas de cerveja em publicidade porque sabem que é uma boa estratégia de aproximação aos seus clientes.

No entanto, as gerações que vieram a seguir aos anos 70 quiseram (como todas as gerações aliás) cortar com o passado e com uma imagem preconceituosa do Portugal dos homens e mulheres de bigode. Recordo-me de falar com alguns brasileiros e a imagem que tinham é que lá, o português era muito provavelmente dono de uma padaria. Como é natural, a sociedade quis acompanhar os tempos e as tendências que vinham do estrangeiro. Quando falo de modernidade (não confundamos com modernismo ou modernização, são conceitos diferentes), é no sentido que Baudelaire deu, está na forma como se entende a realidade das coisas, dos factos e da necessidade de se distanciar do passado como se o mesmo não fosse uma semente do presente. Hoje temos uma miríade de influências, sobretudo africanas e americanas, que transformou a nossa imagem, sobretudo nos grandes centros urbanos, em algo mais contemporâneo, mas mais homogéneo com outras sociedades. E nesse sentido, o “castiço” foi ficando para trás, ficando mais preso a esse passado e consequente nostalgia. Tornou-se uma raridade e conto pelos dedos os amigos e conhecidos que considero “castiços”, sobretudo nos círculos sociais urbanos em que vivemos. Ao pensarmos, por exemplo, na tendência hoteleira atual, são os turismos rurais precisamente que estão a ter sucesso como turismo interno. Porque nos transportam para este espaço de tempo perdido, de conforto familiar, porque temos saudades da comida local, dos empregados que metem conversa sem vergonha, mas com respeito, destes castiços que andam por aí.

A questão inicial tem, na verdade, uma resposta bem simples: sim, é possível. Porque são também estas gerações novas que estão a recuperar, aos poucos, esta ligação ao passado, mas juntando o melhor destes dois mundos, que aliás, estão a tornar isso como tendência. Sejamos castiços modernos.

Texto de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.

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