Poema “Março”, de Alice Neto de Sousa

por Comunidade Cultura e Arte,    7 Abril, 2022
Poema “Março”, de Alice Neto de Sousa
Alice Neto de Sousa / Fotografia de Cláudia Teixeira | Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril
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Alice Neto de Sousa tem 28 anos, nasceu na antiga freguesia lisboeta de São Sebastião da Pedreira, é licenciada e mestre em Reabilitação Psicomotora e poeta.

Depois de darmos a conhecer, em formato escrito, os poemas “Poeta” e “Capital“, mostramos agora “Março”, um poema escrito a convite de Pedro Adão e Silva, a propósito das comemorações dos 50 anos do 25 de abril, habita agora a cápsula do tempo, para ser aberta a 25 de abril de 2074. Este poema foi apresentado a 23 de março no Pátio da Galé na “Abertura Solene das Comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril de 1974. 

Março

Caem chuvas de março sobre a cidade, 
E digo este poema meio que sem vontade, 
Porque me treme a voz em pensar em Liberdade. 

Da janela, vejo os pássaros a arranhar os céus, 
A cair em voos picados, 
E percebo que mais vale falar do que silêncios entornados
Porque o silêncio, é como este entardecer
É como o início da dor, quando começa a doer
É uma liberdade tísica a querer gritar
E tudo quanto se ouve é oco
De tanto que nos ensinaram a calar
Quem é que ainda sabe falar?
Quem ressuscita um pássaro morto?

Sou livre, digo a rodopiar por baixo da chuva
A acender um maço, 
A grafitar liberdade, 
A tatuar um pássaro no meio do braço, 

Porque as chuvas que me caem ainda são de março, 
e algo me chove a mais dentro do peito, 
como se os cravos se fossem murchar, 
como se a liberdade fosse este vento, 
como se nos quisessem calar, 
como se nos faltasse sangue no peito. 

Caem chuvas de março, sobre os meus pés descalços, 
As pétalas que me mancham são de abril
Eu disse, as pedras que me mancham são de mil

Que a liberdade, que vejo da janela 
É um estado líquido aquoso,
É mais um desempregado, 
É mais um vento, ventoso, 
São os sem abrigo parados no Chiado, 
É pintar os lábios a vermelho
É vestir uma farda, mascarar um país inteiro, 
É o som da colher a aquecer na esquina, 
É mais o tacho a raspar de uma família,
A liberdade, é uma utopia
E, eu sei, sou poeta e tenho miopia, 
Mas de onde vejo não somos todos iguais, 
Que as chuvas que molham uns, 
Silenciam todos os demais.

A Liberdade, 
É a trincheira dos meus dias, 
É dispersar as multidões em continência,
É um chorar sinuoso como a calçada, 
É abraçar as mães, os pais, os filhos, as filhas, a madrugada. 
É um vai ficar tudo bem
Com certeza de quase nada. 
E não só de pão e água e se faz um continente, 
É preciso terra, é preciso dar uma alma a toda a gente,
Que a liberdade é muito mais do que uma mensagem secreta,
Uma indireta, escondida no meio do poema, 
E não é sobre política, 
É sobre ser poeta, é sobre ser poeticamente correta. 
Porque caem chuva de março sobre a cidade,
E algo me chove a mais dentro do peito, 
O tempo é de cortar a respiração,
A apneia que sinto é a de pensar
As pétalas que me murcham são de abril
Eu disse, as pedras que me murcham são de mil
Caem chuvas de março sobre abril. 

Com o tejo preso nos olhos, 
Continuo a tentar entender, 
Como o medo zigzagueia o passo, 
Como se envelhecem as peles no cansaço, 
É esta a mesma luta que começamos há anos atrás?
Ia jurar que estes marços me sabem a todos iguais. 

Cai o maço, raso na janela, 
Já se ouvem as canções, 
Os pássaros da primavera, 
Dá-me um cravo na boca para recomeçar, 
Que mesmo com os corações desafinados, 
Vamos marchar, marchar, marchar. 

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