Portugal aos olhos dos seus autores
Portugal é pequeno na sua realidade geográfica. É um dado adquirido, sabido e entendido para todos aqueles que, desde miúdos, observam o mapa-mundi, vendo Portugal ali naquele cantão da Europa. No entanto, a sua grandeza nem sempre foi apresentada dessa maneira. Tempos em que o Império se fazia para lá dos mares, em vários outros lugares. Dessa memória, reza uma história da qual a herança é preciosa, de uma fase paladina dos Descobrimentos do mundo, em que o choque de identidades é comumente esquecido. O que sobra, de verdade, dessa realidade é o que Portugal firmou nos últimos tempos, aquilo que é hoje, do rescaldo do seu ontem.
Da pequena grande fauna e flora da qual dispõe no seu território, surge, nas letras redigidas e estrofadas, as lendas associadas a cada cidade, os mitos associados e inspirados a cada lugar, os contos e as fontes de cada espaço constituinte desse tal cantão da Europa. Portugal pode ser visto através de um olhar amplo, dedutivo, em que um pequeno contexto carateriza toda a sociedade. Foi assim que tantos singraram, dentro e fora de portas, olhando para o que foi feito cá e lá, precisamente, pelos compatriotas de quem escreveu. Fernando Pessoa, Luís de Camões, Padre António Vieira, José Saramago, e, mais recentemente, António Lobo Antunes. O compêndio da literatura não oscila muito mais do que nestes nomes, naquilo que toca a um olhar universal da realidade portuguesa. A caraterização da existência, ao ritmo dos poemas, das peças e das narrativas, fez-se sentir, de igual forma nos Mários de Sá Carneiro, nos Gil Vicentes, nas Florbelas Espanca, entre tantos outros. No entanto, as suas proveniências pronunciam-se sobre um Portugal que é compreendido, de lés a lés, nos palcos dos seus literatos.
A Norte, ouvimos Eugénio de Andrade em íntima conexão com o Porto, com os seus odores e com os seus sons, com aquilo que o Douro levava a jusante para a sua Foz. Raúl Brandão estava lá com os pescadores, pelas fainas, a ver todo aquele modo de vida, da qual deduziu questões elementares da nossa existência. Enquanto isso, Camilo Castelo Branco deparava-se com conflitos conjugais, que tanto inspiraram aos seus romances marcantes no fulgor romantista que assolava todo o país, nas emergentes preocupações liberais, e Júlio Dinis enfrentava as suas agruras com os seus romances socialmente abrangentes, afloradas pela Seara Nova de António Sérgio e Agostinho da Silva. Sophia também se ia inspirando com a poesia sentida do mar que a banhava, que recebia as sensações do Douro que intrigaram Agustina, Torga, Pascoaes e Eça. No Minho, nascia Gil Vicente, que marcaria o teatro que se fazia de norte a sul, sempre com uma inspiração messiânica do ser português; enquanto os Trás-os-Montes se expressavam por Guerra Junqueiro, e, no Ave, o protagonista era José Régio, a bordo do seu cântico negro. Consoante se descia para lá dos regionalismos, Garrett e Herculano levam Portugal pelas suas viagens, desde os presbíteros retrospetivos e das viagens que se fazem com muita poesia à mistura.
A centro, por entre a Oliveira de Azeméis de Ferreira de Castro, prevalece a mística estudantil percorria Coimbra e arredores, antecedida pelas experimentações poéticas modernas de Sá de Miranda. Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, em suas questões coimbrãs, e Camilo Pessanha foram antecessores da composição sentida e assumida de Zeca Afonso, estudante de proa na elevação da liberdade portuguesa, à imagem daqueles que o precediam e que o sucederam. Nos seus arrabaldes, em Montemor-o-Novo, nasciam os primeiros passos da peregrinação de Fernão Mendes Pinto; sem esquecer o percurso pitoresco de Aquilino Ribeiro, de Sernancelhe; e o medicinal registo de Fernando Namora, que nascia em Condeixa-a-Nova. Castelo Branco soava a Cardoso Pires, da sua Vila de Rei, enquanto a Azinhaga, na ribatejana da Golegã, tinha o fruto Saramago, com sabor a Nobel. Ainda no Ribatejo, entre Santarém nos palcos de Bernardo Santareno, de Rio Maior, irrompia a trovejante poesia de Ruy Belo, enquanto de Vila Franca de Xira, se sentia o percurso vivido de Alves Redol, nas memórias da poesia de D. Dinis, encantado pelos pinhais que o faziam deslocar de Coimbra.
Em Lisboa, foram tantos aqueles que a viram como menina e moça, como espelho de luz e de partida, de um regresso sempre prometido nas memórias e nos protagonismos da passagem imponente do Tejo. Pessoa, Camões, O’Neill, Cesariny, Manuel Alegre, Saramago, Almada Negreiros, Cesário Verde protagonizam essa incursão pelos interstícios mais ou menos iluminados, mais ou menos típicos da identidade lisboeta. No seu aconchego, surge o Alentejo sentido na aparição ao neorrealista e existencialista Vergílio Ferreira, que vinha da interior Gouveia, para além de Manuel da Fonseca e de Al Berto, que em Sines cresceu; para além da tão denotada Vila Viçosa de Florbela Espanca, onde tanto da luta da condição feminina já se impunha nas suas causas e cargas. Mais a litoral, estava Bocage, na sua boémia setubalense, com um trago ao seu Sado, perto do lugar onde Bernardim Ribeiro já compunha algumas peças. Nas praias algarvias, Ramos Rosa fez poesia, assim como António Aleixo bem lá na fronteira, e Júlio Dantas dramaturgia. Nas ilhas, Natália Correia, Vitorino Nemésio e Herberto Hélder absorveram o legado das passagens repentinas de Antero e de Raul Brandão, assim como José Tolentino de Mendonça.
Portugal é toda esta representação, esta interpretação, esta reencarnação numa vida que nunca perderá. O seu legado, na ausência dos tempos e dos espaços, estará, para sempre, imortalizado naqueles que nasceram nos seus vários pontos. Na sua dispersão, comum foi a elevação de cunhos diferenciados, advindos de suas origens e contextos, sem esquecer textos e pretextos para a riqueza de afirmar algo tão pequeno como fonte de amores e desamores, que se encantam para lá da despedida, em realismos perdidos nos seus abismos. Em suma, Portugal nunca se perderá, num roteiro que se preenche, não só pelo regalo à vista, mas também à mente e ao coração. De suas partes, seus autores; de suas imortalidades, seus criadores. É disto que se faz o tal cantão.