Primavera Sound (dia 4): um final turbulento para uma 10.ª edição com muito boa música
O último dia de Primavera Sound Porto teve a particularidade de partilhar três cabeças-de-cartaz: Blur, Halsey e New Order. Devido aos seus públicos relativamente distintos, o recinto do festival voltou a encher como havíamos visto nos primeiros dois dias. No entanto, com o regresso do sol e as soluções encontradas para a lama que se havia acumulado em frente ao palco Porto, a experiência continuou a estar ao nível daquilo a que o festival portuense nos habituou ao longo destas 10 edições.
O primeiro concerto do dia a que assistimos foi o de Yard Act. Depois de terem lançado o seu álbum de estreia, The Overload, no ano passado, ficámos entusiasmados por vê-los ao vivo. A banda move-se pelos terrenos do post-punk que tem vindo a ganhar ainda tracção no Reino Unido em anos recentes, mas com um pé no Britpop e com o estilo mais falado (ou gritado) que cantado do vocalista James Smith. O humor seco britânico está sempre presente, tendo sido uma óptima maneira de lidar com o atraso de 15 minutos que obrigou a banda a fazer o soundcheck à pressa, perante um público incauto.
Para compensar, deram um concerto com garra, que se focou nos ritmos maquinais de canções como “Witness (Can I Get A?)”. “Pour Another” foi o exemplo de uma canção mais leve, sobre usar a bebida como veículo para fazer novos amigos, numa espécie de banda sonora de um pub. Já perto do final, atiram-se a “100% Endurance”, canção que recentemente foi reeditada com vocais de Elton John. James conta-nos que nunca se cansará de cantar essa música, o que se adequa à sua temática de resiliência. Apesar de todas as coisas más que vão acontecendo, a música insta-nos a seguir sempre em frente.
Debaixo do sol, sentámo-nos na colina do Palco Vodafone, mas a sensação foi a de estarmos num tablao na Andaluzia. O concerto de Israel Fernández e Diego del Morao foi uma amostra genuína e encantadora do melhor que o flamenco tem. Sem modernizações ou adaptações, o grupo usou a sua sinergia para passar a enorme emoção desse género musical, completo com os famosos “olés” e outras interjeições de incentivo. Admiramos a forma como o flamenco encontrou o seu caminho até estes lugares e pensamos que esse poderia ser um bom caminho para o fado percorrer também. Conseguimos pensar nuns quantos nomes com bagagem suficiente para encabeçar um concerto assim, num palco grande do Primavera Sound.
Mais tarde, já ao pôr-do-sol e no novo palco bonito do festival, chamado Plenitude, reunimo-nos com Julia Holter. Apesar de ter lançado poucas coisas novas desde Aviary, o seu último álbum, o concerto foi ideal para revisitarmos as canções de Have You in My Wilderness e Loud City Song. Ouvimos a jazzy “In the Green Wild”, as luminosas “Feel You” e “Sea Calls Me Home” e o crescendo ligeiro mas intenso de “Betsy on the Roof”, reservada para a recta final do concerto.
Foi facilmente um dos concertos mais intimistas do festival, mesmo com alguma ligeira interferência sonora provinda do concerto de Karate, no palco Vodafone. A música psicadélica e vagamente experimental de Holter requereu a total atenção e dedicação do público, que não deixou de as estender à artista. A imersão foi tanta que a própria Julia se perdeu na música, apenas quebrando o feitiço para se dirigir a nós distraidamente; não como quem nos ignora, mas como quem nos quer puxar para o seu idílio. Foi magia em forma de música.
Quem também pretende passar uma experiência imersiva é Yves Tumor. Só que fá-lo de maneira diferente, através de um som envolvente e pujante, que obrigue as pessoas a expressar-se e a interagir com a música a um nível mais físico. Para isso, afastou-se ligeiramente do noise que caracterizou o seu concerto neste mesmo festival em 2018 e aproximando-se de géneros como o krautrock e a música industrial.
Dois dos motivos pelos quais favorecemos o concerto de Yves Tumor à estreia de Halsey em Portugal foram o facto de Yves ter lançado o seu mais recente álbum já este ano e por sabermos que os seus concertos são sempre uma experiência fabulosa. Este concerto não foi excepção, mas foi uma pena que o público não tenha estado à altura da energia transmitida em palco, pelo menos até ao final. Canções como “Echolalia” ou a incrível “Gospel for a New Century” não foram capazes de arrancar maiores reacções do público, que quase parecia ignorar o que se passava em palco, não sabemos se por cansaço se por resistência à música. Fez-nos sentir saudades da experiência em Paredes de Coura.
No palco logo ao lado, apresentaram-se os co-cabeças-de-cartaz New Order. Sem nos querermos repetir, voltamos a mencionar Paredes de Coura, onde o espectáculo da banda em 2019 não divergiu particularmente deste. O synthpop dançável da banda funciona especialmente bem quando é mais focado nos sintetizadores e menos nas guitarras. Esses momentos ocasionalmente tornavam o anfiteatro do Primavera Sound numa grande discoteca ao ar livre, envolvendo todas as pessoas num estilo de música quase intemporal e que chega a qualquer geração.
Chegados a “True Faith”, já perto do final do concerto, a música simplesmente parou de soar no mega sistema de som do festival. Visivelmente atónitos, a banda e equipa tentaram resolver o problema em tempo útil, com o apoio do público, que continuou a encorajar a banda. Entretanto, na segunda tentativa, o mesmo voltou a acontecer. Quiçá essa música esteja amaldiçoada. Certo é que, depois de uma pausa um pouco mais longa, voltaram e atiraram-se logo ao seu grande hit, “Blue Monday”, para apaziguar e animar o público expectante. Para o final, ficou reservado outro dos momentos mais esperados da noite, a versão da banda de “Love Will Tear Us Apart”, carregando e propagando o legado de Ian Curtis. Apesar das falhas técnicas, foi um belo concerto que terá certamente agradado os festivaleiros mais saudosistas.
Entretanto, a escolha de ver Blur foi a mais óbvia para a maioria do público, mas nós, já tendo visto a banda duas vezes e ainda com poucas novidades no seu cardápio, decidimos espreitar um pouco do concerto da catalã Marina Herlop. Lembrando Björk na sua experimentação rítmica destemida, na sua voz elástica e em algumas referências de música de câmara (notórias quando se sentava ao piano), Marina surpreendeu as pouco mais de 200 pessoas que tiveram o prazer de assistir ao espectáculo, no qual usou o catalão como uma língua alienígena, vergando-o às suas habilidades vocais quase animalescas. Por trás da voz, a música parecia emular fenómenos naturais como géiseres ou paisagens graníticas e rugosas. Foi uma das amostras de música mais aventureiras do festival.
Isto significa que, ao chegarmos ao concerto de Blur, a banda já se encontrava na recta final. “Girls & Boys” foi o início da sequência de sucessos como “Song 2”, “Advert” ou “Tender”. Esta última, tocada integralmente, baseia-se essencialmente na repetição de uma espécie de mantra gospel que se poderia tornar cansativa ou demasiado açucarada. No entanto, a banda fá-lo funcionar na perfeição, convencendo-nos realmente de que o amor é a coisa mais importante do mundo, mesmo quando não queremos acreditar nisso. Antes do final, a banda ainda apresentou “The Narcissist”, uma amostra do seu novo álbum, The Ballad of Darren, a ser lançado em Julho deste ano. Confessamos que não tínhamos particular vontade de ver o concerto dos Blur, talvez por cansaço, mas as suas canções são inegavelmente deliciosas. Quando a melodia de “The Universal” começa a soar, temos a certeza de que os veríamos uma e outra vez. A sensação que fica é a de felicidade.
E assim nos despedimos da 10.ª edição do Primavera Sound Porto. Apesar dos pequenos problemas que foram acontecendo ao longo destes quatro dias, foi mais uma mostra de excelente música que, no fundo, é o que nos leva ao Parque da Cidade todos os anos. Até 2024!