Prolegómenos para um manual de sobrevivência em cidades sobrepovoadas
Valério Romão, 1974, licenciou-se em Filosofia e é escritor, contista, dramaturgo, tradutor. Seleccionado como Jovem Criador nacional no início do século, tem diversos livros publicados e é um dos nomes sonantes da nova literatura em Portugal. Foi finalista do Prix Femina 2016.
O nosso primeiro-ministro disse a um canal de televisão qualquer, há coisa de dias, que Portugal pode e deve receber mais turistas. Para quem esperava um módico de bom senso e de pudor por parte dos nossos governantes, estamos razoavelmente conversados. Para António Costa e Fernando Medina, as minudências de ter uma cidade selvaticamente ocupada por hordas de mochileiros expondo a periclitância das infraestruturas de Lisboa é largamente compensada pelos dividendos obtidos na forma de impostos e pela diminuição da percentagem de desemprego. É pensar em grande, dir-se-á. Não podemos deter-nos nas tragédias pessoais das rendas meteóricas, nos Robles da situação, nas lixeiras a céu aberto em que se tornaram a maior parte das ruas, no emprego precário e mal pago resultante do turismo com que se maquilham as estatísticas que se atiram para cima das mesas de reunião em Bruxelas com indisfarçável orgulho. Afinal, António Costa e Fernando Medina não vivem na cidade dos turistas, não frequentam os mesmos locais, nem sequer têm que conduzir nela; são as criaturas das garagens: saem da garagem de casa e entram na garagem dos locais para onde se deslocam. Da cidade conhecem o que se vê pelo vidro do carro e uma ou outra rua previamente higienizada para acolher uma arruada ou inauguração. “As pessoas não são números” é um belíssimo mantra pré-eleitoral. Depois da nalga bem assente na cadeira do poder, as pessoas são o que eu quiser.
As coisas não vão mudar por decreto municipal ou governamental. Continuar-se-á a ordenhar a vaca até das tetas só lhe sair areia. E, ainda assim, haverá quem diga tratar-se de leite em pó. A ganância desgovernada só conhece saciedade de curto prazo.
Felizmente, podemos fazer algo em relação a isto. Vivemos num tempo em que muitas das escolhas dos consumidores – e isso inclui o homo turisticus – são decididas por via de ratings e de comentários nas redes sociais e em plataformas disponíveis em qualquer smartphone. E parece ser mais fácil modificar as avaliações resultantes de uma visita a Lisboa ou ao Porto do que o comportamento de quem elegemos.
Comecemos pelo básico. Graças a não sabemos que providência divina, Portugal não tem sido assolado por qualquer tipo de catástrofe. Não temos tido a atenção do Daesh, a violência urbana é residual, as doenças são as que se conhecem um pouco por todo o lado e que não demovem ninguém, o custo de vida é ainda bastante razoável e até o terremoto tem-nos feito a fineza de não despertar abruptamente. Mas, naquilo que nos compete, podemos fingir. Pode não ser o suficiente para impedir a nossa trasladação para os subúrbios dos subúrbios mas, pelo menos, não teremos saído sem dar alguma luta.
Comecemos por ir para a rua de máscara, como em boa parte das cidades da ásia onde, graças à poluição, só se pode andar assim. Se nos perguntarem se é por causa da poluição, responderemos negativamente. Se insistirem em saber por que é, diremos apenas “que achamos que já não é transmissível e que já está tudo bem”. Deixemo-los laborar nos seus próprios receios. Como aprendemos com Hitchcock, uma porta fechada é mais assustadora do que o reflexo de um monstro.
Abandonemos, pelo menos por algum tempo, a nossa cordialidade linguística. Nous sommes super sympa, as everybody knows, mas não carece ser sempre assim. Finjamo-nos iletrados, tontos, distraídos. Reduzamos a nossa competência nas línguas estrangeiras a uns míseros “hello” e “thank you”.
Quando passarem os eléctricos sobrelotados e ávidos de captar para o Instagram os nativos na sua natividade, saquemos dos telefones e captemo-los com o mesmo embasbacamento com que eles nos fotografam. Invertendo a lógica do zoológico, pode ser que eles se manquem.
Não lhes sirvamos os melhores pastéis de nata, as sardinhas mais frescas, a fatia maior do abade de priscos. Abracemos o lema “em cada ementa pelo menos três tipos de hambúrguer excessivamente passado”. As ameijoas da ria são nossas. NOSSAS.
Aqueles que sobreviverem ao atrito civilizacional, adoptemo-los. Serão certamente os melhores. E, como em qualquer relação, temos de ser conquistados.
(Nota: esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização)