Reação das autoridades chinesas a protestos expõe dimensão do aparelho de segurança interno
A reação das autoridades chinesas às manifestações em larga escala do último fim de semana expôs a dimensão dos gastos realizados pelo Partido Comunista Chinês (PCC) com segurança interna, que são superiores ao orçamento da Defesa.
O Governo chinês há várias décadas que se prepara para lidar com protestos em larga escala, tendo montado o mais sofisticado aparelho de vigilância e monitorização do mundo e equipado as suas forças de segurança.
Depois de uma resposta inicial menos musculada, com agentes de segurança a usar gás pimenta, a polícia e as tropas paramilitares inundaram as ruas das principais cidades do país com jipes, carrinhas e carros blindados, numa demonstração massiva de força, verificou a Lusa.
No metro e nas ruas das metrópoles chinesas, agentes da polícia pararam aleatoriamente cidadãos para inspecionar telemóveis, à procura de fotografias, vídeos, mensagens ou aplicações banidas no país, que pudessem mostrar um eventual envolvimento ou até mesmo simpatia pelos protestos.
Não se sabe quantas pessoas foram detidas ou se alguém vai enfrentar acusações.
Próximo da zona da capital chinesa onde ocorreram os protestos do último sábado, a polícia tem nos últimos dias tirado fotografias a todos os que param, mesmo aqueles que descansam depois de fazer exercício físico, verificou a Lusa.
A maioria dos manifestantes insurgiu-se contra as medidas de prevenção epidémica vigentes na China, que são as mais restritivas do mundo, ao abrigo da política de ‘zero casos’ de covid-19.
A estratégia inclui o isolamento de todos os casos positivos e contactos próximos, muitas vezes em condições degradantes, o bloqueio de bairros ou cidades inteiras, durante semanas ou meses, e a realização constante de testes em massa.
Conforme constatou a Lusa, houve também críticas diretas ao PCC, partido único do poder na China, e ao seu líder, Xi Jinping, discurso que é punível na China com pena de prisão.
Embora em muito menor escala, estes foram os protestos mais significativos desde o movimento pró-democracia da Praça de Tiananmen, em 1989, que o regime ainda vê como a sua maior crise existencial. Com líderes e manifestantes num impasse, o Exército Popular de Libertação esmagou na altura as manifestações com tanques e tropas, matando centenas ou, possivelmente, milhares de manifestantes. O número total de mortos continua a ser segredo de Estado.
Após a repressão de Tiananmen, o regime comunista investiu fortemente em meios para lidar com futuros movimentos de agitação social, sem recorrer imediatamente ao uso de força letal.
Durante uma vaga de protestos liderados por trabalhadores despedidos das indústrias estatais, durante as reformas económicas dos anos 1990 e início dos anos 2000, as autoridades testaram esta abordagem, ao prender os líderes dos protestos e ao impedir que organizadores em diferentes cidades se unissem, mas sem punir a maioria dos manifestantes.
Em certas ocasiões, as autoridades foram apanhadas de surpresa.
Por exemplo, em 1999, seguidores do grupo de meditação Falun Gong, cujo número de membros chegou a ser superior ao do PCC, cercaram o complexo da liderança, em Pequim, numa demonstração que o então Presidente chinês Jiang Zemin interpretou como uma afronta pessoal.
A isto seguiu-se uma dura repressão, com os líderes da Falun Gong a serem punidos com pesadas penas de prisão e os membros perseguidos e, por vezes, enviados para centros de reeducação.
Em 2008, as autoridades chinesas responderam com força aos tumultos antigovernamentais que eclodiram na capital do Tibete, Lhasa, e em outras regiões tibetanas no oeste da China.
No ano seguinte, tropas paramilitares intervieram na capital da região de Xinjiang, Urumqi, que foi palco de violentos confrontos étnicos, entre membros da minoria étnica de origem muçulmana uigur e os han, a etnia dominante na China. Os confrontos resultaram em pelo menos 197 mortos.
A capacidade do Estado chinês em suprimir movimentos contestatários logo numa fase inicial deve-se a um enorme orçamento de segurança interna, que triplicou na última década, superando o da Defesa nacional.
Só a região de Xinjiang registou um aumento de dez vezes nos gastos com segurança doméstica, desde o início dos anos 2000, de acordo com fontes ocidentais.
Segundo dados do Governo chinês, os gastos com segurança interna excederam o orçamento de Defesa, pela primeira vez, em 2010. Em 2013, a China parou de disponibilizar estes dados.
O grupo de reflexão (‘think tank’) norte-americano Jamestown Foundation estimou que os gastos com segurança interna atingiram 113% dos gastos com a Defesa em 2016. Os aumentos anuais foram quase o dobro dos da Defesa nacional, em termos percentuais, e ambos cresceram muito mais rápido do que o PIB (Produto Interno Bruto) do país.
Isto reflete-se também num sistema menos visível, mas igualmente intimidador e amplo, para monitorizar os conteúdos ‘online’ em busca de mensagens antigovernamentais, notícias e imagens suscetíveis de denegrir o regime.
Os censores do Governo trabalham para apagar este tipo de conteúdos, enquanto os órgãos de propaganda inundam a rede de Internet com mensagens a favor do PCC.
Os avanços da China em redes de telecomunicações de Quinta Geração (5G), tecnologia de reconhecimento facial, Inteligência Artificial ou ‘big data’ (análise de dados massiva) serviram também para reforçar o caráter totalitário do regime.
A vigilância começa na rua: as cidades chinesas têm uma média de 370 câmaras por 1.000 habitantes, segundo o instituto de pesquisa Comparitech. É de longe o rácio mais elevado do mundo.
Esta vasta rede está dotada de tecnologia de reconhecimento facial, que é complementada com a instalação nas ruas e bairros de coletores de números internacionais do subscritor móvel (IMSI, na sigla em inglês) e de números de série eletrónicos (ESM) dos telemóveis – cada dispositivo tem os seus próprios números -, permitindo associar o rosto ao telemóvel de quem passa.
Por detrás do aparelho repressivo está um sistema jurídico que serve o Partido único. As leis são suficientemente vagas para punir vozes dissidentes, por “perturbação da ordem pública”, “subversão do poder do Estado” ou “espalhar boatos ‘online’”. Os casos quase sempre resultam em condenações.
Em mais um desincentivo à rebelião, após cumprirem pena de prisão, as pessoas muitas vezes enfrentam anos de vigilância e assédio.