Pulp Fisco

por Leonardo Cruz,    20 Março, 2022
Pulp Fisco
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Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Pulp
nome

  1. (fruto, vegetal) polpa
  2. massa mole e húmida, massa pastosa, papa, pasta

adjetivo

(livros, revistas) literatura de má qualidade, sensacionalista;

Fisco
nome

  1. Fazenda Pública
  2. Parte da administração pública encarregada da cobrança de impostos
  3. Erário
  4. Entidade à qual povo originário da extremidade ocidental da península ibérica tenta esquivar-se desde a primeira metade do século XII

Fonte: Internet

— Vocês estão todos tranquilos, mas isto é um assalto!
Ringo assustou metade das pessoas do restaurante. Porém, o meu amigo, mais conhecido entre nós como “Abóbora”, referia-se ao aumento do preço dos combustíveis anunciado na televisão.
— É um exagero, uma subida enorme — concordei.
A guerra começara há pouco mais de uma semana e a subida do preço dos combustíveis era já de 20 cêntimos por litro.
— Uma cambada de ladrões, estes tipos das gasolineiras — continuou o Abóbora — e os do Governo ainda pior! 
Yolanda, a namorada a quem tratava apaixonadamente por “Coelhinha”, interrompeu-o enquanto regressava à mesa:
— Não adoram quando voltam da casa-de-banho e têm a comida à espera? Desculpem, deixei a conversa a meio — rapinava com os dedos batatas fritas da travessa — como ficou a sentença do tal banqueiro?
— O Doutor Eduardo Salteado? Seis anos, pá… Se eu roubasse aquela garrafa apanhava mais, Coelhinha.
— Por falar em garrafa… — Vicente fez sinal ao empregado.
— E ainda vai recorrer, de certezinha — Júlio partilhava a indignação de Ringo.
Era bom voltar a almoçar com estes quatro — o casal de eternos namorados, “Abóbora” e “Coelhinha” e aquela dupla de calmeirões, sempre junta, uma espécie de joint-venture especializada em sarilhos: “Vicente & Júlio”. Não nos juntávamos há meses. Amigos de infância, gente séria com quem posso falar à vontade acerca de tudo. E, sobretudo, acerca de nada.

Peço a carta de vinhos. Yolanda, sempre curiosa por novidades, dispara:
— O que aconselha?
— Por acaso, menina, tenho aqui uma coisinha à maneira. Chama-se “Herdade Nérrobade”, um vinho feito na Nazaré com três castas: Pinot No Ar, Syrah e Touriga internacional, salvo erro. Cem por cento para exportação. Não encontra isto em Portugal. Eu é que tenho lá um amigo que me orienta umas botelhas. Quinze euros. Por ser para vocês.
— Vamos a ela! — Vicente é o primeiro a provar — Este vinho é bom pra caralho. Não sei se vale os 15 euros, mas é bom pra caralho.
O empregado sorri, um pouco envergonhado, enquanto enche os restantes copos.

Iniciada a refeição, a conversa foi parar ao futebol.

— Logo há o grande clássico! — tento ferir a clubite aguda de Vicente — Aposto que vai ser mais uma roubalheira das antigas.
— Roubalheira é no teu clube! Não viste as notícias? Mais uma rusga da PJ por evasão fiscal. Aquelas comissões das transferências: uma metade para o agente do jogador, outra para o bolso…
— Podes falar muito, tu. O teu presidente tem um historial digno e impoluto…de oferta de “fruta” e “café com leite” a árbitros. 
— Mas nunca roubou o próprio clube!
Júlio interrompe-nos.
— Sabem quem vai estar no grande jogo? Aqui o campeão!
— Como? Está esgotadíssimo há semanas — reclama Vicente.
— Não tens os meus conhecimentos…
— Todos os cães danados têm sorte — diz Yolanda.
— “Ezequiel 25:17. O caminho do homem justo é rodeado por todos os lados pelas injustiças dos egoístas e pela tirania dos homens maus. Abençoado é aquele que, em nome da caridade e da boa vontade, pastoreia os fracos pelo vale da escuridão, pois ele é verdadeiramente o guardião de seu irmão e o salvador dos filhos perdidos…” — Júlio cita de cor, para espanto de todos.
— Desde quando é que decoraste a Bíblia? — pergunta Ringo.
— Aprendi isto num filme — responde Júlio.

Na televisão aparece o ex-primeiro-ministro Joaquim Aristóteles, indiciado num processo judicial moroso e complexo; uma obra literária com mais de 5.000 páginas, nas quais os crimes são “qualificados” e as acusações adjetivadas: a corrupção é “passiva”, a fraude “fiscal” e os capitais “branqueados“.

— Olha outro ladrão! — Ringo quase espuma da boca.
Aristóteles foi ilibado da maioria dos crimes a que foi acusado, no entanto Vicente concorda com Ringo:
— Este país é uma vergonha! Se fosse o Zé da esquina a roubar fruta no supermercado, ia logo de cana.
Tento fazer uma piada, mas sou de imediato interrompido por Ringo:
— Quem é o Zé d…
— Isto só neste país!

Antes da sobremesa há tempo para criticar o nível de compadrio do governo, da oposição e do sistema judicial, etcétera. 

Volta à baila a guerra na Ucrânia. 
Ringo, histórico adepto de soluções fáceis para problemas difíceis, defende o serviço militar obrigatório.

— Vai ter de ser! Meter a miudagem toda a fazer a recruta. Só lhes faz é bem!
— Tu nem sequer foste à tropa, Abóbora — digo eu. Virando-me para Vicente — Tu foste?
— Fui, pois — Vicente sorri — Os melhores anos da minha vida! Fiquei a trabalhar na messe dos oficiais, não estão bem a ver… era eu quem pesava as coisas. No final havia sempre sobras. A meu favor! Tratavam-me como um senhor.

Antes da sobremesa ainda veio outra garrafa do vinho “especial para vocês” que também vi servido noutra mesa. Todavia não é altura para cismar com exclusividades; em tempos de guerras não se limpam armas nem se reclama do vinho.

Pedida a conta, Yolanda recolheu o dinheiro de todos e entregou-o à senhora, que perguntou se alguém queria fatura com número de contribuinte. Ao desinteresse dos demais, Júlio sugere:
— Ponha tudo neste número. É da empresa onde eu trabalho, ainda recebo algum.
Sou a primeira pessoa a levantar-me da mesa.
— Amigos, tenho que me despachar, vou passar no mecânico, tenho lá o carro. A ver se esse caraças me tira o IVA do arranjo. Nem que seja na mão de obra.

Despedimo-nos com abraços e promessas de nos voltarmos a reunir. A amizade é das poucas coisas ainda isentas de imposto. E, se verdadeira, é do mais precioso que podemos ter na vida, não há como escapar.

Vicente aproveita a deixa:
— Acho que também está na hora de bazarmos. Tenho que ir ao multibanco, hoje é a data-limite do IMI.
Júlio acompanha-o:
— É provavelmente uma boa ideia, estou para o mesmo. 

Para surpresa dos demais, os dois matulões levantam-se — um vestindo uma t-shirt com o logótipo “Escola Básica e Secundária de Santa Cruz” e outro uma camisola com os dizeres “Estou com este totó”, ambos de calções e chinelos, armados com folhas de papel timbradas com o símbolo da Autoridade Tributária — e caminham para fora do restaurante sem dizer uma única palavra, embrulhando os papéis com as mãos e atirando-os para o fundo do caixote do lixo.

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