Qual a diferença entre marcha e pride?
Este ano assinalam-se os 50 anos da Revolta de Stonewall, que ocorreu a 28 de junho de 1969. Passados 50 anos de muitas lutas e conquistas de direitos LGBTI+. Passados 50 anos de muitas lutas e conquistas de direitos LGBTI+, nunca foi tão urgente regressar às origens de revolta como hoje.
A origem do movimento ativista LGBT começou em 1969, em Nova Iorque, com uma mulher afro-americana, drag queen, prostituta, que atirou um tijolo a um polícia. Chama-se Marsha P. Johnson (1945-1992) e foi uma das grandes defensoras dos direitos LGBT que fundou logo depois das manifestações violentas de Stonewall Inn (um bar gay), a Frente de Libertação Gay.
Esta foi, simbolicamente, a primeira pedra a ser lançada para uma longa caminhada que deu origem a marchas de protesto, de reivindicação pela igualdade de direitos, independentemente de quem se ama ou com quem se quer partilhar a vida, e pelo direito de se ser o que se quiser. Muitos e muitas perderam a vida, mas fizeram história, mudaram a vida das pessoas. Deixaram de ser invisíveis e tornaram muitos e muitas mais outros e outras visíveis.
A luta social passou a ser política e conquistaram-se direitos fundamentais. Mas nada é irreversível. De um momento para o outro tudo pode mudar e esses direitos humanos podem desaparecer.
Passados 50 anos de Stonewall assistimos cada vez mais a uma mercantilização do movimento ativista LGBTI+ em Portugal e no mundo. A “comunidade” LGBT está a dividir-se e não é apenas no nosso país. De um lado há os que defendem as Marchas e do outro os que defendem os Prides. Há visões diferentes para a conquista de direitos LGBT dentro da própria “comunidade”. Veja-se o exemplo recente, em maio deste ano, em Nova Iorque, que teve dois eventos marcados para o mesmo dia: o NYC Pride March, organizado pela Heritage of Pride, e a Queer Liberation March, organizado pela Reclaim Pride Coalition.
“No 50.º aniversário de Stonewall é muito importante voltar às raízes radicais da revolta”, comentou Terry Roethlein, um dos membros da Reclaim Pride Coalition. Este movimento é constituído por associações/organizações e por pessoas em nome individual que defendem o lema “Queer liberation not rainbow capitalism!”, ou seja, “não ao capitalismo arco-íris”.
Os Prides estão a ocupar o espaço do movimento ativista em todo o mundo. Em Portugal já se começa a notar o mesmo problema, sobretudo com a possível chegada do EuroPride. Portugal irá apresentar brevemente uma candidatura para organizar e receber em 2022 o EuroPride – a maior celebração anual do Orgulho LGBTI+ na Europa. Mas já este ano vão decorrer o Matosinhos Pride, em julho, e o Porto Pride, em setembro.
Há uma comercialização muito forte à volta de tudo o que é LGBTI. Há que saber distinguir uma Marcha de um Pride.
Uma Marcha é uma manifestação pública, que consiste em ocupar a rua (espaço público) para reivindicar algo. É uma ação coletiva, é a democracia participativa. Nós cidadãos e cidadãs devemos ter uma participação mais ativa na sociedade. Devemos transformar a realidade por meio de uma ação prática, ou seja, através de um protesto/manifestação. De uma forma simples e resumida, as marchas servem para: celebrar o que já se conquistou; recordar os que já morreram a lutar para hoje marcharmos; e conquistar o que ainda falta cumprir.
As marchas são políticas, são uma reivindicação, são a luta dos cidadãos e das cidadãs nas ruas. Cada marcha tem o seu manifesto político (apartidário – não fazer confusão, apesar de os partidos políticos apoiarem, e bem, as marchas). Há cartazes, há cânticos, há protestos, palavras de ordem que são gritadas nas ruas, como por exemplo “Nem menos, nem mais, direitos iguais”; “Assim se vê a força LGBT”; “Sim, sim, sim, somos assim. Não, não, não, à discriminação”, entre tantos outros gritos de força bafejados por um espírito cívico mais forte e comum.
Costuma-se ouvir dizer que num mundo ideal não seria preciso haver Marchas e Prides. Pelo contrário. As Marchas serão sempre necessárias, para que não nos esqueçamos do que já se conquistou, de quem morreu para que hoje pudéssemos sair à rua. Daí que ainda hoje se comemore o 25 de abril (SEMPRE!), que este ano celebra 45 anos de liberdade.
As marchas servem para pensar em comum, acumular forças e aumentar o seu “exército” de ativistas em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, sem homofobia, transfobia e bifobia, sem machismo e racismo. Há uma sensibilização maior por parte das pessoas que participam nas marchas em relação a todas estas discriminações.
50 anos depois sente-se uma fraca identificação com motes de luta, de política e de solidariedade. Ainda há uma certa passividade, ignorância e despreocupação. Dá-se por garantido o que já se conquistou. Como se nada fosse irreversível. Está a perder-se uma certa militância radical como existiu nos anos 90. Veja-se o exemplo da Act Up Paris, que foi uma associação militante de luta de combate à SIDA, da comunidade homossexual, criada em 1989, inspirada no modelo americano. Descontentes com a passividade e o silêncio dos políticos, cientistas e dos lucros das farmacêuticas, os membros desta associação eram autênticos soldados de rua, cujo seu sangue foi derramado e ignorado.
“Há quem queira lucrar com os nossos direitos humanos. O direito de amar, a nossa liberdade, não estão a venda. Não estamos à venda!”
Do outro lado temos o Pride, que é basicamente uma festa, uma parada, um desfile de marcas. Os Prides não reivindicam nada. São ocos, um vazio político que consiste em festejar o orgulho LGBT, sem reivindicar absolutamente nada. As ruas são ocupadas por autocarros alegóricos, com ecrãs gigantes, música e álcool. E o mais grave de tudo são a quantidade de marcas de empresários e bancários que estampam o seu logotipo na bandeira LGBT. Fazem lembrar um desfile académico, que de conteúdo e relevância é nula.
As empresas e empresários que apoiam o Pride só aparecem uma vez por ano a defender os direitos LGBTI. Onde é que estão o resto do ano? Onde é que estão no apoio das restantes causas e direitos que precisam de ser consagrados? Só aparecem como “simpatizantes” de pessoas LGBTI quando surge o Pride. Ou seja, quando há uma oportunidade de negócio, de ter LUCRO. Empresas como a Netflix, Google, Fujitsu, Microsoft, empresários da hotelaria, de bares e discotecas gay, etc, todos investem milhões nos Prides. Porquê? Para ajudar a construir uma sociedade mais justa e plena em direitos iguais? Não. Porque dá LUCRO! Ainda há dúvidas? “O ativismo está na mira do lucro de muitos empresários e banqueiros”.
Outro problema associado ao Pride são as figuras públicas, as “celebridades”, que dão a cara pelo evento. Cantores, apresentadores de TV, locutores de rádio, atores e atrizes e até políticos, que nunca colocaram um pé numa marcha pelos direitos LGBT, mas são os primeiros a dar nas vistas ao som de Beyoncé ou Lady Gaga num autocarro do Pride.
Os Prides criam também estereótipos (o homem gay branco como o dominador), e muito merchandise à volta de um símbolo que é de luta, a bandeira. A bandeira LGBT é um símbolo de luta, de liberdade, assim como o cravo de abril o é. Toda a comercialização à volta deste símbolo só o está a desvalorizar e a banalizar. Hoje em dia vê-se arco-íris não como símbolo de liberdade mas como um produto comercial. Há merchandise para todos os gostos, o que demonstra um marketing inteligente.
Quanto ao EuroPride, que é um evento específico de dimensão internacional, “as pessoas que quiserem marchar terão de fazer uma pré-inscrição. As pessoas que vão na rua podem assistir e acompanhar de fora”. Ou seja, não é totalmente aberto e livre.
Os Prides dão visibilidade sim. Mas será que dá assim tanta? O que fica do Pride? Não há conteúdo político. Não há um manifesto. Não se reivindica nada. Não sobra nada. Quer-se capitalizar o movimento ativista. A Variações – Associação de Comércio e Turismo LGBTI de Portugal contribui para isso mesmo.
Não se trata de se ser contra ou a favor dos Prides. Trata-se de perceber o quão vazio politicamente os Prides são. Perceber que há empresas que estão a ter lucro à custa da nossa liberdade, empresas que são cúmplices de crimes sociais, de discriminação (até mesmo dentro da própria empresa para com os seus trabalhadorxs). Mas fazem de conta que são apoiantes, “simpatizantes”, lavando a cara de rosa (Pinkwashing).
Os Prides ignoram todas as injustiças e crimes a pessoas LGBTI+. Ainda são mais de 70 os países onde a homossexualidade é crime por lei. E há países como o Brasil em que se assiste a um retrocesso nos Direitos Humanos, com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência deste país, que tem uma visão retrógrada do mundo, onde “menino veste azul e menina veste rosa”. O Brasil corre o risco de voltar a integrar a lista de países onde a homossexualidade é crime. Os Prides não fazem nada por mudar, para combater a homofobia, bifobia, transfobia, o machismo, o racismo ou a violência doméstica (em casais LGBTI+).
Ainda há tanto por lutar e o sistema capitalista, machista, xenófobo, e patriarcal quer apagar, destruir, ocupar, o movimento ativista. Os Prides associam-se à luta LGBT com o único intuito de gerar lucro.
Este é um assunto que começa a fervilhar dentro do próprio movimento e que o está a dividir. Provavelmente, com este texto, devo passar a “persona non grata” dentro da “comunidade” LGBTI+. Mas enfim, as pessoas são livres de escolher, mas que tenham a consciência de que apesar de haver motivos para celebrar ainda há muita luta por travar.
“No pride for some of us without the liberation for all of us” (“Não há orgulho para alguns sem a libertação de todos nós”).
Artigo escrito por Tiago Resende
Tiago é portuense mas reside em Viseu desde 2015 e é apaixonado por cinema e política. É administrador do site Cinema Sétima Arte, programador de cinema no espaço Carmo 81 e fez parte da equipa que reabriu o Cinema Ícaro, em Viseu, com o Desobedoc 2018. É ativista na Plataforma Já Marchavas, que organizou a 1.ª Marcha LGBTI+ de Viseu, em 2018.