Quem é Amadeo de Souza Cardoso?
Ao lado de nomes como Almada Negreiros ou José Malhoa, Amadeo de Souza-Cardoso foi um dos rostos mais versáteis e elásticos da pintura portuguesa. Com a sua obra a ganhar contornos mais vincados no início do século XX, foi inevitável a influência modernista que bebeu e que incluiu no seu trabalho. Todas as bases do seu trabalho foram-se modificando conforme foi importando novas técnicas e experiências em Paris. No entanto, a precoce morte fez deste um mito que ainda está por ser clarificado no atual pontificado da História.
Amadeo de Souza-Cardoso nasceu a 14 de novembro de 1887 em Manhufe, no concelho de Amarante, no seio de uma família burguesa formada mas rural. Contando com nove irmãos, o futuro artista contou com uma formação sustentável, frequentando o Liceu Nacional de Amarante e o de Coimbra. Continuando itinerante, ingressou em 1905 no curso preparatório de desenho na Academia Real de Belas-Artes na capital portuguesa e, logo no ano seguinte, emigrou para o reputado bairro de Montparnasse, em Paris. Foi neste que viveu durante sete anos e no qual construiu uma rede de contactos privilegiada que lhe permitiu entrar no mundo concorrido e efervescente da criação artística e intelectual. Apesar desta estabilidade profissional, nunca deixou de vir a Portugal, onde deixou raízes e nas quais se quis inspirar para a prossecução da sua obra.
“Amadeo and Manuel Laranjeiro” – 1906
Tudo começou quando conheceu os pintores portugueses Francisco Smith, Emmerico Nunes e Eduardo Viana, para além de ter frequentado alguns ateliers de forma a preparar a sua candidatura ao curso de arquitetura, de forma a conjugar as suas pretensões artísticas com as expectativas familiares. No entanto, e prescindindo desta intenção, começou a fazer algumas caricaturas para jornais portugueses, como o Primeiro de Janeiro. Foi no exercício destas funções que se apercebeu da sua potencialidade como pintor. Em 1908, conheceu a sua futura esposa Lucie Meynardi Pecetto e foi frequentando formações em diversas academias, sendo algumas delas tuteladas pelo pintor Anglada-Camarasa.
Enquanto se consolidava como um artista em ascensão, fomentou amizades fortes com o italiano Amedeo Modigliani e com os escultores Alexander Archipenko e Constantin Brancusi. Nesta reunião de interesses, veio à tona uma tendência pelo apreço pelo primitivismo pictórico, arquitetónico e escultural, para além da oposição ao naturalismo em detrimento de opções mais vigorosas e opostas aos preceitos académicos. Em 1911, na função de pintores, Modigliani e o português promoveram uma exposição no atelier deste, contando com um livro de honra assinado por nomes como Max Jacob, Guillaume Apollinaire e até Pablo Picasso. Ainda neste ano, Amadeo estreou-se em eventos internacionais, expondo algumas das suas obras com mais afeições cubistas no XXVII Salon des Independents. É no rescaldo destas efemérides que travou conhecimento com outros artistas, tais como o casal Delaunay, que viria a instalar-se em Vila do Conde, Marc Chagall, Paul Klee ou Franz Marc.
Em 1912, publicou um álbum designado por “XX Dessins”, que coligiu desenhos referentes à dupla de anos 1911-12 e que foi bastante divulgada nas imprensas portuguesa e francesa. Para finalizar o seu leque de participações em eventos parisienses, expôs obras no Grand Palais (X Salon d’Automne). No entanto, o seu mediatismo levou a que mais produções suas chegassem a outros pontos de convulsões artísticas, tais como Berlim (Erster Deutscher Herbstsalon – Primeiro Salão de Outono Alemão) ou em Nova Iorque (International Exhibition of Modern Art). Estas exposições focaram-se nomeadamente em obras imbuídas de um caráter futurista e modernista, relacionando-se até com o grupo artístico germânico Der Blaue Raiter (O Cavaleiro Azul).
Contudo, o espírito consumido pela ansiedade e pela sua oscilação temperamental deixava-o extasiado por tudo aquilo que viria a lograr. Para além disso, o despoletar da Primeira Guerra Mundial forçou o regresso do artista a Portugal, casando-se com a francesa Lucie a 26 de setembro de 1914. Vivendo numa construção solicitada pelo seu pai na localidade de Manhufe, voltou a conviver com Sonia e Robert Delaunay e geriu o seu tempo com base nos momentos que tirava para a pintura, para a caça e para os seus passeios a cavalo. Porém, sentia-se vítima da reclusão que fora forçado a adotar e isso refletia-se nas sucessivas frustrações em tentativas de participações em eventos internacionais. Em paralelo com alguns planos que vinha fazendo para regressar à capital gaulesa, publicou um novo álbum artístico de nome “12 Reproductions” e foi responsável por algumas exposições de cariz pessoal, tanto no Porto como em Lisboa. A receção por parte do público interessado foi essencialmente marcado pelo espanto, fundamentado pela pouca familiaridade da arte portuguesa com eventos desta dimensão e pela notoriedade granjeada pelo pintor.
Em contrapartida, foi ainda em Portugal que conheceu artistas com paradigmas artísticos e políticos parcialmente similares aos seus (era monárquico), nomeadamente os constituintes do grupo Orpheu, tais como Almada Negreiros e Santa Rita Pintor. Antes de contrair uma doença de pele que lhe viria a impedir de criar a tão sua arte, fez parte de projetos editoriais e publicou alguns trabalhos na revista “Portugal Futurista”. Porém, a ansiedade realçada acima conjugada com a fracassada fuga à gripe espanhola levou-o a ir para a cidade litoral de Espinho. Assim, a doença vitimou-o ainda em 1917, partindo a 25 de outubro com somente 30 anos.
“Entrada” – 1917
O caminho conceptual da sua obra tomou diversas direções, não havendo uma plena convergência de todas as suas ideias mas mais um período de estabilidade que amadurece o seu “eu” artístico. Na chegada a Paris, os seus trabalhos eram essencialmente esboços que representavam interiores de cafés ou paisagens de uma forma relativamente natural. No entanto, e como aprendizado de Anglada Camarasa, a sua obra toma um rumo distinto, partindo para um colorido forte e por um grafismo exuberante, caminhando quase nas linhas do decorativo. É neste encalço que a sua expressão artística se enche de referências, captando tanto aspetos da arte primitiva africana como o rigor do belo das obras japonesas e as emergentes experimentações das criações europeias. O cubismo e o futurismo incluem-se neste lote de manifestações disruptivas em relação aos moldes convencionais de então, para além dos movimentos abstracionistas russos. Esta miscelânea ganharia subsistência nas amizades que semeou então, tentando dar um cunho identitário e personalizado à sua obra com fantasias e memórias do seu subconsciente.
Este imaginário trouxe em si a fragmentação iconográfica e os arabescos e curvas associadas ao cubismo e à exposição do movimento, sem perder a vocação decorativa que as suas obras pareciam assumir. Conforme a década de 1910 se foi desenrolando e a sua participação em mostras foi crescendo, Amadeo explorou a singularidade que o seu trabalho poderia conquistar, dando-se mais a soluções híbridas e até um tanto ou quanto formalizadas. Assim, conseguia uma dialética única entre o virtuosismo modernista e o convencionalismo formalizado da arte de então. Nesta conjugação, conhece a influência do pintor pós-impressionista Paul Cézanne, indo em busca de um plástico jogo de relevos que desse cor e forma a natureza morta e a demais aspetos paisagísticos, referentes até às suas origens lusas e aos espaços onde privou em jovem. Aquando da internacionalização dos seus trabalhos, o artista injetou pormenores expressionistas alemães e imbuiu-as num dramatismo que procurou a tal identidade sublinhada acima. É aqui que se reencontra toda a multiplicidade vetorial do trabalho de Amadeo, nesta expressão singular e irregular de um ser ansioso e virtuoso.
Não obstante todo o empenho de ficar intrinsecamente ligado ao mundo da arte vanguardista, Amadeo de Souza-Cardoso pouco vingou também neste intento. Por ser um dos pioneiros numa fase em que o seu país não se encontrava tão recetivo à espontaneidade criativa, para além de toda a inconsistência da sua produção, o português viu-se reduzido a uma memória estreita em comparação com a dimensão da sua produção. A sua criação artística apresentou-se consistente na diferença e na distinção que foi aplicando a toda a sua obra, percorrendo correntes e experimentando em diversos terrenos. Nunca esquecendo as suas origens, estas que nunca fecharam os braços a um dos seus filhos pródigos, foi articulando a memória realizada com a fantasia velocista e estimulada numa década parisiense. A plasticidade da sua obra permitiu que se desse ao mundo de diversas maneiras, expressando o seu génio com um afinco nervoso mas engenhoso. Um homem que se fragmentou numa combinação de registos e de perceções, sendo injustamente esquecido por décadas a fio até à sua ressurreição num presente de eleição. Cardozo, o ansioso; ou Cardozo, o virtuoso. Qualquer um destes cognomes não chega para condensar um talento que se expandiu num ritmo multiplicado sem que precise de um sentido para ser explicado. Que se visite e que se sinta o génio nervoso e ambicioso de Amadeo.