Quem paga o seguro de saúde de 3,6 milhões de portugueses?

por Hélder Verdade Fontes,    5 Abril, 2024
Quem paga o seguro de saúde de 3,6 milhões de portugueses?
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A ignorância geral, atrevida ou não, assim como a excessiva adoração bacoca dos “especialistas” num determinado microtema, resulta numa fraca qualidade do comentariado português. É notória a leviandade com que se comenta a maioria dos casos, sem uma lógica interactuante ou visão global. No caso concreto da saúde, todos os dias é empolada uma narrativa de que o SNS está imbuído num caos profundo e que as pessoas para serem bem tratadas devem recorrer a um serviço privado, de preferência mediante um seguro de saúde. Só que, como quase sempre, a realidade revela-se muito mais complexa.

A narrativa passada suporta-se no número significativo de portugueses que têm um seguro de saúde. Vários comentadores papagueiam que a percentagem de portugueses que recorre a seguros, subsistemas e planos complementares de saúde ultrapassa os 50%. Geralmente, os números são passados de forma superficial, como mera arma de arremesso e com o propósito único de validar um preconceito ideológico: o público é mau e o privado é bom. Como este é um assunto demasiado sério para ser comentado de forma tão pouco sensata, sobretudo porque com a saúde não se brinca, importa reorientar o debate.

Segundo o Observatório para a Saúde, cerca de ⅓ dos portugueses possui um seguro de saúde. Falamos sensivelmente de 3.6 milhões de pessoas, número significativo para a realidade do país. Contudo, a mesma fonte evidencia que mais de 54% dos cidadãos não o paga, sobretudo porque se encontra incluído num pacote de benefícios empresariais. Ao que parece, a narrativa construída todos os dias fica sem a sua principal base de sustentação: a maioria dos portugueses não opta por um seguro de saúde e, entre os que o têm, a maioria não o paga.

Isto acontece por várias razões. Primeiro, porque mesmo com todos os seus problemas graves (e é impossível ignorá-los), o SNS vai cumprindo o seu papel fundamental de prestador universal de serviços, correspondendo às necessidades da maioria. Segundo, porque a anuidade dos seguros é impeditiva para a maioria dos portugueses. De acordo com o mesmo Observatório para a Saúde, mais de metade dos cidadãos que paga o próprio seguro de saúde faz parte dum agregado com rendimentos líquidos mensais superiores a 2250€, valor muito superior à mediana dos salários, mesmo considerando dois contribuintes. Terceiro, porque uma parte considerável dos portugueses não reconhece valor suficiente num seguro de saúde que justifique o seu pagamento. Bem sei que esta última afirmação choca quem está habituado a empolar os casos problemáticos do SNS, mas não chocará os cidadãos que apresentam queixas dos prestadores de cuidados de saúde privados afinal, perfazem mais de metade do total das queixas. Além disso, os casos graves são tratados ou desviados para o sistema público, circunscrevendo a utilidade dos seguros a cuidados bem mais restritos.

Mas olhemos para quem tem seguro de saúde e não o paga — são, afinal, a maioria. Este é, provavelmente, o “benefício” mais oferecido no mundo empresarial e admito que seja o mais procurado, mas é preciso ser-se claro na sua lógica de existência: o seguro de saúde surge, sobretudo, como forma de contornar o sistema de progressividade remuneratório. Ou seja, ao ser dado fora de um sistema de taxação, prejudica quem não o tem pela menor captação de recursos. Existe também uma lógica atomizada subjacente ao seguro de saúde (e a vários outros benefícios). Outrora, eram comuns sistemas complementares de pensões, cantinas sociais internas, etc. Hoje, os benefícios são individuais, isto é, “indexados” a um só trabalhador. Parece uma minudência, mas prende-se com a necessidade de fragmentação no local de trabalho, condição essencial para a manutenção do neoliberalismo. Além disso, o seguro de saúde e os restantes benefícios não são dados por mera caridade — as empresas servem-se deles para dedução em sede de IRC, contornando, novamente, a progressividade do sistema fiscal. 

E quanto aos que contratam seguros de saúde por iniciativa própria? Creio ser impossível dissociar as subscrições do marketing abusivo directo (spots televisivos e anúncios) e indirecto (narrativa de caos no SNS) feito todos os dias. Aliás, a proliferação de propostas em programas típicos da manhã não é inocente — é aproveitamento mercantil do facto deste entretenimento ser visto, sobretudo, por uma população mais vulnerável, menos informada e que procura mais cuidados de saúde. Fosse este produto mais regulado em termos comunicacionais e não tivesse o empolamento diário habitual, a realidade seria, seguramente, outra.

A manutenção das estruturas de poder na sociedade já não acontece por repressão ou por violência física: ocorre por um moldar dos indivíduos e um guiar da percepção pública com vista à sua aceitação. O empolamento diário de seguros de saúde por comentadores mais ou menos ignorantes é uma forma encapotada de legitimar o serviço privado, ao subentendidamente dizerem que são poucos os que recorrem ao público e que, por isso, não precisamos de investir nele. Não podemos ignorar os graves problemas do SNS que resultam, essencialmente, da ausência de recursos, fracos incentivos e uma gestão demasiado burocrática, morosa e vertical. Talvez sejam demasiados problemas para o que deveria ser um serviço público eficiente, mas engane-se quem acha que é com seguros de saúde que os vamos resolver.

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