Reportagem. A transcendente descida às trevas nas vozes dos Officium Ensemble

por Bernardo Crastes,    18 Junho, 2024
Reportagem. A transcendente descida às trevas nas vozes dos Officium Ensemble
Officium Ensemble no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Depois da caminhada-concerto com Tomás Wallenstein, prosseguimos com a cobertura da edição de 2024 do Festival de Sintra. Já escrevemos várias linhas sobre os diferentes formatos e espectáculos fora do comum deste festival, mas, assumidamente, nada nos havia preparado para a experiência que foi “Ad Tenebrae” (ou “Rumo às Trevas”), o espectáculo apresentado pelo Officium Ensemble na Igreja de Santa Maria, em Sintra.

Esta experiência exclusiva do festival consistiu na apresentação de composições portuguesas do século XVI e XVII, cantadas no estilo polifónico renascentista característico de Portugal. Vale a pena ressalvar ainda que algumas destas composições já não eram apresentadas ao vivo há séculos. Ora, não só foram apresentadas numa fabulosa igreja gótica, como o concerto, iluminado apenas por algumas dezenas de velas, se tornou gradualmente mais escuro à medida que o próprio grupo coral apagava sucessivas velas. A última canção do repertório foi então cantada inteiramente na escuridão. É arrepiante só de se ler.

Officium Ensemble no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

O espectáculo foi apresentado por Martim Sousa Tavares, director artístico do Festival de Sintra desde a edição anterior, que nos contou como “Ad Tenebrae” é inspirado no Ofício das Trevas. Esta é uma cerimónia católica que se celebra na Quarta-feira Santa, na qual 15 velas são progressivamente apagadas, conforme a progressão das leituras de trechos bíblicos. Aqui, as leituras seriam então substituídas pela apresentação de obras de compositores da mais importante escola da polifonia vocal renascentista portuguesa, a Escola de Évora, entre os quais se encontravam Duarte Lobo, Estêvão Lopes Morago, Francisco Martins, Manuel Cardoso e Pedro de Cristo. Tendo em contacto a natureza visual do espectáculo e a falta de luz que o mesmo exige, reminescente dos tempos medievais, Martim pediu enfaticamente ao público que desligasse os telefones e que se coibisse de aplaudir até ao final do espectáculo, para evitar interrupções tanto luminosas como sonoras.

Assim que nos encontrámos prontos para começar, surgiram no coro-baixo da igreja os 13 cantores do Officium Ensemble que actuariam essa noite, assim como o director musical e fundador do grupo, Pedro Teixeira. O alinhamento começou com os diferentes actos de “Missa pro defunctis”, de Manuel Cardoso. Dispostos em meia-lua, com as vozes mais agudas à esquerda e as mais baixas à direita, os cantores trocavam notas perfeitamente conseguidas entre si, criando camadas vocais que adicionavam ou retiravam de acordo com os requisitos da música e do maestro. As vozes ecoavam na arquitectura ampla da igreja e, à falta de jargão técnico para as descrever, evocavam um espectro difuso e brilhante, sem peso mas de alguma forma ancorado pelas leis da gravidade, que se expandia e retraía a seu bel-prazer.

Officium Ensemble no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

De seguida, ouvimos “Responsorium: Memento Meu”, de Duarte Lobo, mas não sem antes se apagarem parte das velas que ladeavam o semi-círculo de cantores. Aliás, entre as actuações de “Lamentatio Feria Quinta” (de Manuel Cardoso), “Tristis est anima mea” (de Pedro de Cristo), “Tenebrae factae sunt” (de Francisco Martins) e “Sepulto Domino” (de Estêvão Lopes Morago), mais e mais velas iam sendo apagadas com um apagador de velas, no ritmo moroso e ponderado que uma actuação com um teor tão ritualístico pedia. Isto permitia aos cantores tomar água e ao público encontrar uma melhor posição nos duros bancos da igreja. O silêncio que se pedia foi francamente respeitado, podendo até chamar-se de sepulcral. Para além de necessário para o grupo coral, que requer absoluta concentração, o silêncio pareceu ser necessário também para o próprio público, que temia perturbar algo que, naquele momento, era muito maior que todos nós.

Curiosamente, a certa altura, pareceu-nos ouvir fortes pancadas na porta da igreja. Tendo em conta que a actuação não foi interrompida, não conseguimos confirmar o que realmente aconteceu, mas certo é que o episódio instigou um estado de alerta, como se estivéssemos na presença de um elemento estranho. Apesar de tudo, a sensação de inquietude que o momento trouxe foi bem-vinda e simplesmente aumentou a expectativa para o derradeiro mergulho na escuridão que, por fim, chegou.

Officium Ensemble no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

As restantes velas que fracamente iluminavam a capela-mor da igreja foram apagadas da forma dramática que esperávamos desde o início, com recurso ao sopro de alguns dos cantores. A sensação foi vertiginosa, como se de repente perdêssemos o chão debaixo dos nossos pés e nos encontrássemos num espaço infinito. A débil luz da Lua crescente entrava pelos poucos e estreitos vitrais da Igreja de Santa Maria, confundindo os nossos olhos que não tiveram tempo de se habituar às trevas. Eis então que “Audivi Vocem” (“Ouvi Vozes”) começa a soar, e a nossa audição, subitamente mais aguçada, apreende tudo. Mesmo sem o acompanhamento dos tablets que haviam usado até então para acompanhar as palavras em latim ou a liderança de Pedro Teixeira, o grupo foi tecnicamente impecável na sua sincronia. Nem imaginamos a dificuldade que terá sido ensaiar isto até chegar ao ponto que podemos descrever como “perfeito”. Fomos às trevas e voltámos, guiados por um coro angelical.

Uns segundos depois, as luzes acenderam-se e, com uma longa ovação, o público agradeceu ao Officium Ensemble por uma experiência transcendente. Pedro Teixeira, por sua vez, agradeceu-nos a nós e falou um pouco mais sobre o programa da actuação e apresentou brevemente os autores das obras apresentadas. Para concluir, fomos presenteados por mais uma performance de “Audivi Vocem”, agora perfeitamente às claras, mas sem diferenças aparentes na actuação.

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No dia seguinte, Martim Sousa Tavares descreveu o concerto como um dos “mais emocionantes da sua vida”, o que é dizer algo, tendo em conta o seu historial com a música. Aliás, é de notar a presença do próprio em praticamente todos os eventos do festival, algo que comprova não só a qualidade do alinhamento, como também a sua confiança no projecto. O Festival de Sintra termina agora o seu primeiro fim-de-semana da edição de 2024, mas há muitos outros eventos a explorar até dia 23 de Junho, entre caminhadas-concerto, concertos (sem caminhada), debates e até um duelo de pianistas, evento que tivemos o prazer de acompanhar no ano passado.

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