Reportagem. As histórias por detrás das canções instrumentais de Mary Lattimore

por Bernardo Crastes,    20 Junho, 2024
Reportagem. As histórias por detrás das canções instrumentais de Mary Lattimore
Mary Lattimore no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Para quem gosta de assistir a concertos em locais diferentes, o Festival de Sintra é o certame ideal para o fazer. Nesta edição de 2024, já assistimos a um concerto numa quinta familiar com vista para o mar e ainda numa igreja gótica iluminada exclusivamente por velas que se foram apagando até à escuridão. Desta vez, foi a vez do Salão Nobre do Palácio de Seteais receber um íntimo concerto de Mary Lattimore, a harpista norte-americana renomeada no seio da música alternativa pela forma como usa e molda o som da harpa às suas composições evocativas e pejadas de memórias, mesmo sendo puramente instrumentais. Foi um concerto que nos permitiu atestar o poder da melodia na estimulação da imaginação.

Outro factor importante do concerto foi efectivamente o cenário. As várias janelas do Salão Nobre permitiam que a luz do final de tarde, apesar de parcialmente oculta por nuvens que se pintavam de dourado, irrompesse pela sala adentro, enaltecendo os frescos da escola de Jean-Baptiste Pillement que adornam as suas paredes. Atrás do palco onde Mary Lattimore se sentou, duas janelas permitiam ver a verdejante paisagem saloia da serra de Sintra. Antes de a harpista começar a tocar, fez os seus agradecimentos à organização do festival e elogiou o ambiente “inspirador” que a rodeava: “linda sala, linda vila, lindo país”. Muito provavelmente essa inspiração contribuiu para um sublime concerto, ainda que a delicada música de Lattimore o pudesse tornar sublime por si só.

Mary Lattimore no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Tocando uma harpa que não aquela a que está habituada — pois fazer uma tour com harpa própria é praticamente impossível em termos técnicos — Mary ia criando os seus loops no momento com recurso a uma pequena loop station que conservou no colo durante praticamente todo o concerto. Dessa forma, criava camadas de som que ocasionalmente modificava com recurso a efeitos. Por vezes, os efeitos aplicados pareciam alegres acidentes que acabavam por ser aproveitados para cada música. Por mais que a fórmula se fosse tornando mais familiar à medida que o concerto avançava, havia sempre uma imprevisibilidade nos sons que provinham do palco.

Tome-se como exemplo a terceira canção tocada, “For Scott Kelly, Returned to Earth”, escrita sobre o astronauta Scott Kelly, que passou quase um ano numa missão espacial. A época do seu regresso à Terra coincidiu com a altura em que Mary estava a recuperar de uma fractura no maxilar que a impediu de falar durante meses. Ao imaginar a readaptação do astronauta à vida terrena, Mary terá feito um paralelismo com o seu próprio retorno à vida social após meses sem falar, inspirando-a compor esta canção. Como não podia deixar de ser, tendo em conta o tema da canção, os sons da harpa foram moldados a uma sonoridade cósmica, evocando o imaginário partilhado pela humanidade quando se fala de viagens ao Espaço. A artista contou-nos que chegou a enviar a canção para a NASA e obteve resposta, dizendo que o próprio Scott Kelly a havia apreciado bastante.

Mary Lattimore no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Cada canção de Mary Lattimore tem uma enorme riqueza de detalhes, não apenas sónicos como também contextuais. “And Then He Wrapped His Wings Around Me”, do seu mais recente álbum, Goodbye, Hotel Arkada, lançado em 2023, levou-nos até um episódio muito particular da infância da artista. Ao ganhar um concurso que a permitiu ir assistir à gravação de um episódio da afamada “Rua Sésamo”, Mary teve a oportunidade de conhecer os diferentes personagens que compõem a série infantil. Mas foi o momento em que o Poupas a abraçou, em que aquele enorme monte de penas amarelas envolveu o seu diminuto corpo de criança, que a inspirou a cristalizar essa memória afectiva em forma de canção. É um momento “que nunca voltará a acontecer”, como nos disse antes de tocar a canção. A versão ao vivo não incluiu a voz de Meg Baird nem o acordeão de Walt McClemens, mas isso não lhe retirou nada da sua envolvência.

Por falar em ligações à infância, ocasionalmente, por cima das canções, ouvíamos interjeições de uma criança que se encontrava mais à frente no público. A aglutinação dos sons infantis com o tom delicado e luminoso da harpa enfatizou as qualidades embaladoras das canções, algo que a própria artista apreciou. “Adoro ter crianças nos meus concertos”, frase à qual a criança respondeu com um enternecedor “obrigado”. Foi mais um dos vários momentos bonitos deste concerto, ao longo do qual Mary Lattimore não conseguiu disfarçar a felicidade, quase nunca retirando o sorriso da cara, numa simpatia contagiante.

Mary Lattimore no Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Uma das questões cruciais do Festival de Sintra é a atenção dada aos programas de cada concerto. Os artistas são incentivados a expor as canções que vão tocando, permitindo uma maior imersão no repertório e até facilitando um futuro regresso às nossas canções preferidas, já pós-concerto. A canção à qual retornámos instantaneamente após o espectáculo de Mary Lattimore foi “Til a Mermaid Drags You Under”, do álbum Silver Ladders, que foi gravado em conjunto com Neil Halstead dos Slowdive. Apesar de a versão ao vivo não contar com a guitarra característica do relaxante shoegaze da banda britânica, a melodia pensativa e repetitiva recordou-nos do proto-trance que as canções dos Slowdive nos induzem. A certa altura, as notas da harpa são adulteradas para soarem difusas e distantes, como se de repente tivéssemos mergulhado dentro de água e uma sereia nos estivesse a arrastar para o fundo do mar, como o nome da canção indica. Mary bate na harpa e arranha as cordas, criando sons tácteis que enriquecem a visualização de naufrágios e detritos de barcos.

Na recta final do concerto, “It Feels Like Floating”, “We Wave From Our Boats” e “Wawa From the Ocean” foram mantendo o efeito encantatório sobre o público, que ocasionalmente fechava os olhos para apreciar melhor os sons. Mas a canção escolhida para o encore, “Silver Ladders”, surpreendeu ao ter sido tocada de uma forma diferente: em formato acústico. Sem a expansão dos amplificadores e sem efeitos, o som da harpa viajava naturalmente até aos nossos ouvidos, reverberando pelas paredes e ainda assim enchendo a sala. Foi um momento muito especial para as cerca de 80 pessoas que se encontravam nesta sessão esgotada, entre as quais se incluíam os músicos Panda Bear, membro dos Animal Collective, e Rivka Ravede, vocalista e baixista da banda norte-americana Spirit of the Beehive.

Este concerto de Mary Lattimore fechou o primeiro fim-de-semana da edição de 2024 do Festival de Sintra, mas há muitos outros eventos para assistir até dia 23 de Junho, entre caminhadas-concerto, concertos (sem caminhada), debates e até um duelo de pianistas, evento que tivemos o prazer de acompanhar no ano passado e que também aconteceu no Salão Nobre do Palácio de Seteais.

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