Reportagem. Uma caminhada por Sintra para ver Tomás Wallenstein com o mar ao fundo
O Festival de Sintra está de regresso à homónima vila saloia para mais uma edição composta por um programa eclético e com actividades para todos os gostos. Desde que o festival alistou Martim Sousa Tavares como seu director criativo, no ano passado, a programação tem passado pela já costumeira ligação à música erudita, mas vai muito além disso, com formatos novos e entusiasmantes que permitem ao público assistir a espectáculos em contextos fora do comum, alguns deles exclusivos do próprio festival. Um desses formatos, que regressou depois do sucesso de 2023, é o das caminhadas-concerto, que convidam os participantes a calçar uns sapatos confortáveis e palmilhar trajectos menos percorridos, para serem recompensados com um bem pensado momento musical no fim.
No passado dia 15 de Junho, juntámo-nos a um selecto grupo de 30 caminhantes para um breve passeio que nos levou do belo centro histórico de Sintra até à Quinta de Mont Fleuri. Por entre esses dois pontos do roteiro — que se inclui nas dezenas de Pequenas Rotas que a Câmara Municipal de Sintra incentiva os visitantes a fazer — passámos por várias das icónicas quintas da vila. Acompanhados por guias e produtores do festival, tentámos identificar plantas, exercitámos levemente as nossas pernas nos declives sintrenses e aproveitámos o invulgarmente soalheiro dia com que a vila nos presenteou. O único problema da rota, derivada do bulício turístico que Sintra tem vivido desde quase sempre, foi termo-nos cruzado com vários carros e grandes grupos turísticos ao longo do caminho, retirando um pouco da aura mística que a paisagem verdejante e edifícios sumptuosos nos transmitiam.
Essa sensação mista rapidamente se dissipou ao chegarmos ao esperado destino, a Quinta de Mont Fleuri, onde fomos recebidos por Tomás Wallenstein e pelo seu piano a dar para o mar (“Um Piano a Dar Para o Mar” era o nome do espectáculo). A sensação que a substituiu foi a de estarmos a chegar a uma grande reunião familiar, na qual um talentoso primo demonstra os seus dotes para gáudio dos presentes. O alinhamento da mostra musical passou principalmente pelas diferentes proveniências que Tomás concentrou em Vida Antiga, o seu álbum de estreia a solo, composto por homenagens a artistas e canções que admira. Mas, como é claro, também não podíamos deixar de ouvir pelo menos um par de canções da banda que o popularizou entre os melómanos portugueses, os Capitão Fausto.
O formato do concerto assentou que nem uma luva na esparsa produção de Vida Antiga, disco no qual se ouve pouco mais do que o piano e a inconfundível voz de Tomás Wallenstein. Aqui houve apenas uma convidada especial: a Natureza. O vento forte que fustigava a colina e o farfalhar das folhas as árvores que nos rodeavam acompanhavam as canções e atribuíam-lhes uma componente etérea, elevando os arpejos de “Cantar Alentejano” (da autoria de Zeca Afonso) para que esvoaçassem rumo à paisagem expansiva. A versão lenta e dolorosa de “Gymnopédie No. 1”, o belíssimo e melancólico clássico de Erik Satie, foi um dos momentos em que isso foi mais aparente, ajudado pela intemporalidade dessa composição.
Unindo referências sem fronteiras e sem pausas, de Satie passámos para o contemporâneo Tim Bernardes, cuja canção “Nascer, Viver, Morrer” foi habilmente cantada por Tomás, evocando a esperança e desejo de viver da letra (“As coisas existem com força e magia / E eu sou a consciência da coisa que eu sou / Eu quero e eu amo e eu posso e eu vou”). Do Brasil, ouvimos ainda versões de “O Mundo é um Moinho”, de Cartola, e “Vida Antiga”, de Erasmo Carlos — artista que “tanta falta nos faz”, nas palavras de Wallenstein.
Por entre todas estas canções, o fio condutor é o amor, “a coisa mais importante”. A coisa comum nas canções de Tomás Wallenstein — ou naquelas que escolhe interpretar — é a faceta do amor que nos mostra. É um amor que soa esperançoso, íntimo, em constante movimento e que nos incita ao progresso. Isso foi particularmente notório na última canção interpretada, “Eu Vim de Longe, Eu Vou Pra Longe”, escrita por José Mário Branco, canção cujo significado muda frequentemente para Tomás. Aqui, foi usada para traçar os 50 anos de progresso que a sociedade tem trilhado desde o 25 de Abril, sempre na companhia daqueles que amamos e nos são mais queridos. A longa duração da canção permitiu-nos uma imersão no estado de espírito de quem não desiste de lutar pelo progresso, com um viciante refrão que vai beber à urgência da canção de intervenção.
Se o concerto já teria sido bonito num contexto mais familiar, num auditório ou num qualquer grande palco, essa beleza foi aqui exacerbada pelo jardim da Quinta de Mont Fleuri e pela vista para o mar, inicialmente encoberto em neblina, que timidamente se foi revelando para nós. A imponência do cenário não nos deteve de o aproveitar de forma casual, permitindo-nos escolher onde e como assistir ao concerto: sentados de pernas cruzadas em frente ao palco, de pé à sombra de uma árvore ao lado do palco, no topo de um morrinho com vista privilegiada e até da janela do piso de cima do solar antigo. Cada vista revelava novos detalhes e formas diferentes de interagir com a música. Essa casualidade e esse desmontar da experiência que é assistir a um concerto permite-nos repensar a forma como a cultura é partilhada pelas pessoas, abrindo possibilidades e estimulando a nossa criatividade e liberdade. É esse tipo de questões que o Festival de Sintra se propõe a levantar.