Revista The New Yorker expôs miséria da ditadura portuguesa nos anos 1950

por Lusa,    18 Abril, 2024
Revista The New Yorker expôs miséria da ditadura portuguesa nos anos 1950
Primeira capa da revista The New Yorker (1925), da autoria de Rea Irvin
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O contraste entre a pobreza de muitos e a riqueza de poucos domina a “Carta de Portugal” da escritora e jornalista norte-americana Mary McCarthy, resultado da sua visita ao país, publicada na revista The New Yorker, em 1955.

Portugal, onde o trabalho era “a mercadoria mais barata”, a miséria comparável “às piores páginas de Victor Hugo”, com os ricos “cada vez mais ricos” e “os pobres cada vez mais pobres”, e onde “não ver” fazia “parte do idílio” da ditadura, era o país de Salazar, “um homem que só fez o melhor pelo seu povo”, como a escritora ouviu dizer à chegada a Lisboa, onde entrou pelo Tejo, no início de janeiro de 1954.

A autora de “O Grupo”, que durante anos escreveu para publicações como a Harper’s Magazine, The New Republic e a Partisan Review, revista que lhe confiou a cobertura da guerra do Vietname, esteve em Portugal até meados de abril desse ano, viajando de norte a sul, de Lisboa, ao Algarve e ao Porto.

O choque entre realidade e propaganda ficou desde logo marcado nos primeiros parágrafos do longo texto “Letter from Portugal”, publicado no número de 28 de janeiro a 05 de fevereiro de 1955 da New Yorker, três anos depois do aparecimento do livro “Férias com Salazar”, da francesa Christine Garnier, projeto do antigo Secretariado Nacional de Propaganda (SNP).

O texto de Mary McCarthy é o oposto do retrato “amaciado e humanizado” do ditador, feito pela colunista do Le Figaro, como o definiu o historiador Fernando Rosas, no prefácio a uma edição recente do livro (Parceria A.M. Pereira, 2002).

McCarthy é descritiva, objetiva na reportagem e também na ficção, como a crítica norte-americana sempre sublinhou, desde a sua estreia nas letras, em 1942. A revista The Nation não hesitou em falar da “implacável honestidade” da obra de Mary McCarthy, e o escritor Norman Mailer designou-a “a primeira dama das letras” americanas, na New York Review of Books.

O retrato que Mary McCarthy fez de Portugal prende-se à realidade das ruas, das pessoas com quem falou, à miséria que via para lá das lojas do Chiado, da Baixa e da Avenida da Liberdade, em Lisboa, aos pedintes, às barracas em redor da capital, às casas sem condições nos bairros antigos, aos “fatos terrivelmente coçados e remendados” que toda a gente parecia usar, aos estendais cheios de roupa “de espantalho”, e ao modo como a realidade divergia do discurso oficial.

Mary McCarthy confrontou aquele que definiu como “homem da propaganda”, e teve como resposta: “Onde viu pessoas pobres?”
A escritora encontrou-as por todo o lado, “na imagem viva da pobreza” de Alfama, no horror da “miséria cinzenta” do Porto, nas crianças seminuas e nas mulheres embrulhadas em trapos, num inverno rigoroso.

“Essas mulheres são muito poupadas”, respondeu-lhe “o homem da propaganda”. E as pessoas de Alfama eram “de uma raça especial, […] nunca viveriam respeitavelmente se lhes dessem essa oportunidade.”

Mary McCarthy não identificou “o homem da propaganda”, mas o texto aponta para os responsáveis máximos do Secretariado Nacional de Informação (SNI), sucessor do SNP. À data, o SNI era dirigido por José Manuel da Costa, ex-chefe de gabinete de Salazar, e tinha em Ramiro Valadão, futuro presidente da futura RTP, o chefe dos serviços de informação.
A escritora sabia que o regime era “semi-totalitário”, que havia censura (viu “Os sete pecados mortais” no cinema reduzidos a quatro), que havia polícia política, sabia que a greve era proibida, que os direitos cívicos eram mínimos, que as mulheres ficavam em casa e as eleições tinham “um sabor soviético”.

Na New Yorker, identificou apenas opositores fora de perigo imediato, como o professor universitário Francisco Cunha Leal, antigo ministro da I República, que se fixara em Espanha, e o sociólogo António Sérgio, “um velho encantador, com uma imagem de Kant no seu escritório”, para quem “era um aborrecimento que o governo já não se preocupasse em prendê-lo, limitando-se a perseguir os seus associados das maneiras mais mesquinhas.”

“Em Portugal, o nome de Salazar” parecia pairar sobre todas as coisas, escreveu Mary McCarthy na conclusão do artigo da New Yorker: “Tal como o de Deus, é pronunciado de um modo especial […], como se a voz envergasse um fato de domingo. Existem dúzias de histórias sobre ele, ilustrando os seus hábitos frugais, a sua relutância em partilhar o poder. Todas parecem falsas como as que se contavam sobre Estaline.”

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