Sai fai

por Leonardo Cruz,    3 Abril, 2022
Sai fai
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(Texto com referência a José Saramago, em ano de centenário*)

Uma das minhas maiores referências culturais é, não o escondo, a “Liga dos Últimos”. Um programa de televisão que mostrava a realidade dos clubes de futebol das ligas distritais, seus jogadores e adeptos, e toda a envolvente desportiva tragicómica do chamado “país real”. Num dos seus episódios, emitidos na primeira década deste século, um treinador gritava no balneário, ao intervalo, com um dos seus jogadores: 

— Atira-te pró chão, pá! Se sentires algum toque na área, atira-te pró chão! 

O roliço avançado, esbaforido pelo desgaste dos primeiros 45 minutos, frustrado pela exigência do técnico e, ao mesmo tempo, receoso por eventual mágoa adquirida com a queda, não acatou a ordem de ânimo (e corpo) leve:

— Ó mister, eu amanhã tenho que ir trabalhar!

É assim, imbuído deste espírito de demissão, que inicio este texto com uma declaração de intenções. Pelo facto de ter vida programada para os próximos anos, opto por situar a história que vos vou contar num planeta distante. Peço a todos um espírito aberto na compreensão quer das semelhanças como das diferenças entre os humanos que habitam o nosso mundo e os seres de que povoam este outro que, a partir de agora, será conhecido como Planeta Renhex.

Esta história passou-se mais ou menos na altura do programa de televisão que mencionei acima. 

Comecemos.

Há relativamente pouco tempo, numa galáxia que fica logo ali como quem vai, decidi, com um grupo de amigos, passar uma noite do Primeiro Dia de Descanso na pitoresca povoação de Ranzea. Estávamos no Ziguidú, a altura festiva em que toda a população se mascara com as vestes de profissões que outros praticam. Não que eu seja um grande fã de máscaras ou da música tradicional desta quadra, mas a ideia de poder beber enormes quantidade de Jujica fresca com amigos, durante horas sem fim, ainda por cima com a possibilidade de não ser reconhecido, nunca me pareceu das piores.

Além disso, o Ziguidú em Ranzea representa uma espécie de realidade alternativa: durante alguns dias vive-se de noite, num universo paralelo povoado por seres disfarçados, um excitante microcosmos de personagens surreais a quem a única obrigação exigida é tentar aguentar, o mais possível, o frio, o álcool e, como é óbvio, as ressacas.

Como referi, era a noite do Primeiro Dia de Descanso e em Clocabaa, meu local de origem, não se passava grande coisa. Por isso fui com os amigos Zgreg, Fai, Tic e Roi até ao povoado vizinho, em busca de diversão. Após duas ou três visitas rápidas, acabámos por decidir permanecer num estabelecimento junto à avenida principal, mais motivados pela promoção “6 Jujicas = 5 Moedas” do que por outra razão. Penso ter sido Tic que enviou uma mensagem telepática a dois amigos do género V que mais tarde apareceram. 

Foi divertido ver as danças típicas dos locais, a diversidade de disfarces e cores davam ao ambiente uma aura hipnótica, um transe coletivo que se adensava com o aumento da quantidade de bebida ingerida. Um grupo de ranzeanos do género V bailava aos encontrões contra os nossos amigos do mesmo género que, entretanto, haviam chegado, o que levou ao seu aborrecimento e consequente despedida. Apenas ficámos os 5 amigos do género oIo, os únicos renhexanos não mascarados naquele espaço, ainda por cima oriundos da rival Clocabaa. As Jujicas geladas eram a areia que amarrava a quilha deste navio. 

Algumas unidades de tempo se passaram quando me vi na iminência de vazar líquidos em excesso no meu organismo. Dirigi-me à Cápsula das Necessidades Fisiológicas que tinha o símbolo oIo na fachada e, mal entrei, encontrei um cenário no mínimo estranho. Dois ranzeanos mascarados demonstravam enorme exaltação junto à zona de lavagem de membros. Um deles parecia chorar de raiva e apresentava dois dos quatro membros superiores ensanguentados. Uma mancha azul-cueca na parede mostrava a origem do sangue e, se dúvidas tivesse, o ranzeano voltou a esmurrá-la:

— Ele quis matar-me! – gritava – Apertou-me os dois pescoços!

O seu companheiro confirmava a teoria:

— Aquele filho de um grandíssimo renhexano-do-género-V-que-o-vende-por-moedas!

Pasmado com a situação, ao virar um dos olhos para o lado esquerdo reparei que o meu amigo Roi ocupava o recipiente-amarelo, o que me obrigou a aguentar um pouco mais o ímpeto vazador. Enquanto esperava com alguma aflição, fingia não presenciar os gritos e a angústia dos dois locais que insistiam na teoria da tentativa de assassinato.

— Se eu o apanho, nem sei o que lhe faça!

O ódio parece dar lugar à dúvida, pensei. Enquanto eu divagava nestas reflexões, Roi cedeu lugar ao fim do meu desespero. Assim que ocupei o local do alívio, um vulto cuja sombra me pareceu gigante saiu com estrondo do compartimento das descargas sólidas. Era um indivíduo alto e fino, “fantasiado” com um comprido fato castanho de quadrados azuis, argolas verdes nos pescoços e os três olhos totalmente pintados de negro — uma imagem digna do conto “O Monstranho” de Cranen Stephe, um dos meus escrevedores preferidos em todo o Renhex. Soltou um grito que quase se sobrepôs ao barulho que vinha da zona das danças:

— O que vociferas? Quem mal te fez?

O cerrado sotaque ranzeano naquela voz cavernosa tornava tudo ainda mais assustador. Até os seus conhecidos pareciam amedrontados:

— Calma, Zé João, isto não é nada contigo!

— Quem danos te provocou? — Zé João, a tenebrosa figura, não se contentava com a dispensa de obrigatoriedades — Eu mato quem te causou transtorno!

Roi, surpreso e imóvel, aguardava vez no lava-membros enquanto eu, no recipiente-amarelo, presenciava a cena com um misto de perplexidade e satisfação por finalmente estar a libertar toda aquela Jujica.

— Ah, Zé João, isto não é nada contigo! – repetiu o dos membros em sangue.

– Tenho conhecimento de quem te incutiu prejuízo! — Zé João espumava de metade das bocas — Quem foi eu sei: foi um ser de Clocabaa!

De imediato, dois dos meus olhos cruzaram-se com os três de Roi, que aproveitou o contacto visual para bravamente abandonar a Cápsula. A frase “foi um ser de Clocabaa” ecoava nas minhas cabeças de tal forma que, por momentos, deixei de ouvir os três ranzeanos — sendo certo que conseguia ver que Zé João continuava enfurecido e os outros dois apelavam à sua calma.  Assim que terminei o que ali tinha vindo fazer, recordo-o como se tivesse sido há menos unidades de tempo do que aquelas que de facto se passaram, senti no meu interior aquilo que o Grande Livro Religioso das Frases Feitas refere como uma “epifania de fé”. Pensei, dos fundos dos corações, aproximar-me de Zé João e dos seus amigos e dizer-lhes num tom sereno: “Meus caros, não pude deixar de ouvir o que disseram, já percebi que ocorreu uma situação chata aqui com este amigo, e que o Senhor Zé João entende que a mesma foi causada por alguém de Clocabaa. Pois bem, senhores, estão na presença de um clocabaano, nascido e criado, que conhece tão bem as suas ruas como as suas boas gentes. Estou confiante que tudo se trata de um mal-entendido e coloco-me desde já à vossa inteira disposição para ajudar no que entenderem por necessário. Bem sei que há uma rivalidade antiga entre os habitantes de Ranzea e os da minha povoação, mas isso são situações de tal anacronismo que não merecem ser levadas em conta por renhexers jovens, urbanos e com mundividência, como é, tenho-o como certo, o nosso caso.” 

Ao terceiro grito “Eu mato-o!”, o efeito da Jujica pareceu abandonar o meu corpo num ápice e, com a mesma velocidade, decidi abdicar do meu momentâneo alter-ego pacificador e ir ver onde estava Roi e os outros.

Ao chegar junto aos meus amigos, sorri, fiz-lhes sinal para aproximarem os seus órgãos auditivos das minhas bocas e, aparentando a maior tranquilidade possível, sussurrei:
— TEMOS DE SAIR DAQUI!

Em dez milésimas de unidade do tempo contei o que se tinha passado, e que um tal de Zé João, alguém temido pelos próprios conrenhexanos, pretendia matar “um ser de Clocabaa”.

— Sabem quem é de Clocabaa, está aqui desmascarado e a jeito de ser chacinado? — perguntei de forma irónica enquanto apontava todos os 60 dedos para o meu grupo de comparsas — Nós!

A última memória auditiva que guardei desse estabelecimento foi a voz do Zgreg, gritando com o hesitante amigo que aguardava por um vislumbre do raivoso trio saindo da Cápsula das Necessidades Fisiológicas, e das suas decididas palavras: 

— Sai, Fai!

Assim deixámos Ranzea e o seu povo, que sempre foi mais conhecido pelo vigor do que pela complacência, e regressámos à nossa querida Clocabaa a toda a velocidade. Deixei os meus amigos nos respetivos lares, sãos e salvos, e dirigi-me a casa. Quando estacionei a nave, já os sete sóis* se tinham levantado.

FIM.

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