“Sangue e Mármore”: a áudio novela de David Bruno que acrescenta algo novo à música portuguesa
Nota: este artigo contém spoilers quanto ao desenrolar da áudio novela “Sangue e Mármore”, da autoria de David Bruno.
“Sangue e Mármore”. Falamos de algo verdadeiramente revolucionário na música portuguesa do século XXI. Não só se trata de, talvez, a primeira áudio novela em formato de disco realizada por parte de um cantor/músico (neste século, mas quiçá no anterior também), mas também de uma história com local e espaço bem precisos. Avintes, freguesia de Vila Nova de Gaia, corre o ano de 2001, ano da cidade do Porto como capital europeia da cultural, ano que viu o Boavista a ser campeão nacional de futebol masculino, ano, também, da tragédia da ponte de Entre-os-Rios. O assassinato de Mário Sequeira, um marmorista bem-sucedido proveniente de Vilar do Paraíso, a descoberta do seu corpo jazido em frente ao Zoo de Santo Inácio, acompanhado de uma fotografia de bolso e de uma unha de gel, e a chegada do inspetor Guedes para apurar o sucedido e os respetivos culpados. A pergunta, desta feita, é: “quem é máto Sequeirá”? Pelo meio, a personagem da femme fatale Sandra Isabel e a de Crespo, uma espécie de mercenário à portuguesa. François da Costa, o narrador com aspirações a ser o jornalista Olivier Bonamici, conta-nos as incidências desta novela com a carga dramática, a vividez e a “tosquice” necessárias para quem a escuta e, de certa forma, prolonga essa escuta para os demais sentidos, de igual maneira, a vivam.
No final, à boa maneira da “esparguete do faroeste”, todos morrem à exceção de uma personagem. Qual é essa personagem? Pois claro, a femme fatale. Até lá chegar, estará envolvida na morte dos demais protagonistas, por mais que a sua consciência vá repousar num apartamento dispendioso na linha de praias de Ofir. Guedes, depois de seduzido por Sandra e por esta o dar a conhecer Crespo, acaba por ser morto pela jibóia de Crespo após decifrar que este, contratado por Sandra e, num ajuste de contas que correu mal, matara Sequeira. Isto, logicamente, depois de Guedes terminar a vida deste manhoso prestador de serviços com um tiro na nuca. Este trovadorismo é acompanhado, claro está, por músicas: são eles os temas de cada um destes singulares rostos e os convidados para interpretá-los (Rui Reininho no tema de Sequeira, Gisela João no de Sandra e Marlon Brandão no de Guedes) trazem uma encarnação muito especial e própria para os “homenageados”. São músicas muito à imagem (ou ao som) do que David Bruno vem desenvolvendo nesta sua já avolumada carreira, que remonta ao “Último Tango em Mafamude” — mesmo descontando a sua fabulosa presença no empolgante e satírico Conjunto Corona —, com referências ao passado e ao imaginário locais, regionais e até nacionais.
Nesta áudio novela, vai mais longe e enumera os pontos mais ínfimos do município de Vila Nova de Gaia, desde o seu remoto interior até à sua linha de praias, tanto na narração, como nas próprias canções. De igual modo, os bruxedos de Sandra Isabel, os contratos com Guedes, os negócios de Sequeira, os serviços de Crespo, todos eles comungam desta vivência e da convivência informal, que se passa sem as redes sociais ou sem os meios de comunicação tradicionais. Tudo cara-a-cara, na espontaneidade do momento, em que os negócios, as “tramóias”, os esquemas, as discussões e as agressões decorrem e que são o sumo deste enredo, algo que toca a tantos, desde o ouvir falar no café até às histórias do tio ou do padrinho nos almoços de família. Na essência, temos David Bruno em discurso indireto — neste caso, por intermédio do figurino de François da Costa — a enriquecer o seu universo já tão polvilhado e condimentado destes sabores e tragos das esquinas e das ruelas.
Por mais que se possa achar que se trata de uma áudio novela curta e relativamente explosiva, sem grande espaço para muito suspense, há-que convir o formato da mesma, um disco que se sujeita à típica duração de até 60 minutos. Com isto em mente, e tomando em conta o risco assumido pelo artista na composição e apresentação de um verdadeiro memorial às radionovelas e às suas origens gaienses, não se pode deixar de saudar este “produto” que com tantos mexe, alcançando um público cada vez mais plural e inclusivo. Igualmente de saudar o maravilhoso videoclip que, paralelo à apresentação da áudio novela — uma nota para a sua estreia, precisamente, em Avintes, no seu Auditório d’Os Plebeus Avintenses —, foi ter a uma pedreira de Pardais, em Vila Viçosa, chamada Fonte de Moura, e acomodou Marquito — presença assídua nas cordas e que tão bem volta a estar — e Rui Reininho, devidamente equipado para encarnar Sequeira.
Pelas vicissitudes do formato, as três estrelas poder-se-iam ajustar, mas o risco, a inovação e (mais um)a viagem por tantas encruzilhadas à “tuga” deixam-nos tentados a conceder mais uma estrela. Isto e a tendência que a sua música tem de amadurecer como um bom Porto acolhido no cais desta tão visada Gaia. Porém, achamos injusto votar o destino deste trabalho a uma mera métrica quantitativa e, como tal, deixamos assim, à disposição de que se saboreie, gole a gole, sem que se esqueça que o rótulo já consta na garrafa e não será necessário outro.
Embora não possamos ter estado na pré-escuta em Avintes, fomos ter ao Hard Club, no Porto, e à formal apresentação de um tamanho tesouro da portugalidade kitsch e “modernaça”, embora o seu enredo remonte a 2001. Véspera de feriado prometia noite longa e assim foi, prolongando-se para lá da meia-noite. Há 3 anos, em 2019, ainda o Covid era uma miragem, já lá tínhamos estado e fomos conduzidos para o segundo palco. Porém, desta feita, seguimos para o principal, que encheu e que corresponde à evolução da notoriedade e dos holofotes deste projeto musical. O arranque foi trazido por António Bandeiras, com um visual bem mais limpo e retro, envergando um casaco castanho, conduziu as sensações iniciais na mesa de mistura, com um leque de fragrâncias provindas do reggaeton, do “french touch” — a música eletrónica francesa — e até um leve trago de música cigana. Pouco antes das 23h, entrou Marquito e David Bruno, fortemente aclamados por um público efervescente e pronto para vibrar com todas as forças aos reptos dos artistas.
Para quem pensava que o concerto se iria cingir à áudio novela, puro engano: o gaiense trouxe muitas das pérolas que preenchem a caixa de preciosidades do seu leque musical. Foi-se do Raiashopping — ouviu-se “Praliné”, “Doucement” e a loucura da “Festa da Espuma”, que levou Bandeiras — que, como sempre, proporcionou um espetáculo à parte, entre apelos a palmas, strips, flexões e air guitars e air drums ao alcance de poucos — ao tão desejado crowdsurfing. De igual modo, ouvimos “Inatel”, embora com a ausência sentida de Mike El Nite, que também não esteve para interpretar “Interveniente Acidental”, por razões associadas a partilhas de imóveis e terrenos. No entanto, também “Bebe e Dorme” e “Não Gosto K Me Mentem” fizeram as delícias de quem já havia passado pelos primeiros êxitos de David Bruno, tal como “Mesa para Dois no Carpa”. Os exclusivos “Lamborghini na Roulotte” e a finalíssima “#150ml” — nesta, o cantor percorreu a multidão e colocou-a a cantar para o microfone — cumpriram o resto do alinhamento. Foi pena não ter sido testado o EP “Tens-me Na Mão”, lançado ainda este ano, que produziu algumas canções que ficaram no ouvido e que poderiam, perfeitamente, ter resultado neste palco.
Demasiado gentis foi o que o público foi de novo, cantando, como é apanágio “Gondomar”, “Mafamude”, “Marquito” ou “Bandeiras”. De igual modo, na presença dos convidados — Rui Reininho e Marlon Brandão (Gisela João não esteve e a ausência marcou pela negativa esta apresentação da áudio novela) —, o carinho foi gigante. David Bruno sentiu e, com palmas, gritos e outros impulsos, fez o que pôde para puxar pelo público ao máximo, que correspondeu na totalidade e fez do Hard Club um salão de festas. Muitos já haviam escutado os temas de “Sangue e Mármore” e os temas de Sequeira e de Sandra foram os que mais reconhecimento granjearam. Grande parte do público foi, também, contemplado por uma chuva de rosas presenteada por Bandeiras e um dos seus membros ia ficando com o Motorola dourado com uns quinze anos que Reininho atirou para a audiência.
No fundo, foi mais um encontro de David Bruno, Marquito e António Bandeiras com a sua falange de apoio gigante, para lá das redes sociais, onde já vão criando uma relação cada vez mais direta e humorística. Porém, nada melhor que este encontro coletivo e plural, onde todos têm o seu espaço e a sua voz e onde todos contribuem para a felicidade uns dos outros: David Bruno, movido pela sua crescente força de apoio e de suporte para a criação de histórias e de canções e de arriscar em formatos novos, embora tão enraizados no gosto das gerações anteriores; o público, sensibilizado para a beleza de visitar e de revisitar o que há de melhor de si na sua terra e no seu país, força criadora e interventiva nas tais narrativas reais e/ou imaginadas. No fundo, um enriquecimento mútuo de ânimo leve, solto e com um rasgo satírico que dá um toque tão especial a tamanha ambiência. Que assim perdure.