Sara

por Cronista convidado,    6 Dezembro, 2020
Sara
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Vi, durante a altura mais apertada do confinamento, o documentário de 2019 do Jorge Pelicano, Tony. É, antes de mais, um olhar sociológico à relação que se cria entre um ídolo e os seus fãs. É, na minha perspetiva, um bocadinho mais complexo do que isso: é a relação que se cria entre um Portugal profundo e do interior, mas também do Portugal mais urbanizado, a relação entre um Portugal do Norte, ao Sul, estrangeirado e todas as pontas do mundo com um homem que vingou profundamente na vida. A história de como António Antunes, fabril na indústria da carne, se torna NO ídolo romântico (para mim, o maior, mais até que Marco Paulo) capaz de arrebatar quem o vê e ouve. Como nenhum outro nome em Portugal conseguiu fazer.

A minha mãe é uma dessas pessoas: o Tony Carreira é a minha primeira memória musical e também o primeiro concerto que fui, não tenho dedos suficientes para contar quantas vezes já o vi ao vivo (entre “Pavilhões Atlânticos” a abarrotar a festas locais onde se ouvem as fãs mais atrevidas com uma intensidade indescritível) e tantos outros seriam necessários para as tardes em que vi os especiais Tony Carreira na televisão, das canções mais antigas sei as letras todas, Ricardo Landum era para a minha mãe um mestre das palavras, havia DVDs, revistas e livros sobre o Tony Carreira em minha. Sei exatamente o que significa Tony Carreira para pessoas como a minha mãe: o vingar da humildade e do trabalho, do amor genuíno e do apreço pela família – um arquétipo perfeito do que é ser um Homem. É um porto de abrigo para milhares de mulheres. Vejam a doçura, mas também a resiliência de um das fãs que aparece no documentário Tony: completamente sozinha no mundo e com pouco dinheiro, a sua casa tem fotografias, cartazes, entrevistas, autógrafos do Tony Carreira por todo o lado. Tenta não perder um concerto. É o efeito maior do amor, da fé e da esperança que cada momento “Tony” lhe garante.

Sei tão bem o que é isso. Muito cedo percebi que a família é uma parte fundamental de toda a estrutura Carreira: qualquer grande concerto tinha sempre um dos filhos Carreira a acompanhar o pai – à Sara, a mais tímida e inexperiente, só a vi uma vez. Hoje percebo porque choravam tantas senhoras ao meu lado: é do amor, o afeto entre a família que se fazem grandes momentos. A Sara faleceu num acidente muito trágico: é estranho vermos alguém tão estranhamento próximo e distante falecer assim. Especialmente alguém tão novo e com tantos sonhos, com tanta vontade de vingar na música como o pai, os irmãos fizeram. Bonita e, pelo que leio dos que eram próximos, com um coração e uma alma semelhantes à do pai. Este é um momento que transformará Tony Carreira, a mãe Fernanda, os irmãos Mickael e David e todos aqueles que vivem intensamente como fãs.

Quero-vos com isto dizer que não era necessário ser fã da Sara, até porque ainda tinha uma carreira tímida, para sentir muito a dor com a sua perda. Morreu um símbolo de amor para muitas pessoas. Mulheres, algumas delas, que nunca sentiram amor no primeiro grau. De alegria de ter uma família unida. E das pessoas que, tal como aquela senhora e como a minha mãe, não desistem de lutar – às vezes não interessa muito bem pelo quê. O que interessa é lutar pelo que acreditamos. Viver a vida com alegria, pela Sara.

Crónica de Gonçalo Cota
Nascido em Almada, Gonçalo Cota é analista de dados e escreve, esporadicamente, sobre música. Já viajou por mais de 30 países, foi a mais de 200 concertos e festivais, é fã de figos e odeia favas com entrecosto. Uma destas coisas é mentira – não acreditem em tudo o que lêem na internet.

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