“Severance”: a sociedade do cansaço e da individualidade de Byung-Chul Han
Este artigo contém spoilers.
“Severance”, a nova série original da Apple TV, criada pelo argumentista Dan Erickson e realizada por Ben Stiller e Aoife McArdle, é um cruzamento entre o thriller, o humor negro e a ficção científica, uma espécie de “Black Mirror meets The Office”, num universo “Westworld”.
O conceito da série é simples, mas repleto de implicações filosóficas altamente complexas: e se, através de um implante cerebral, pudéssemos separar as nossas memórias de trabalho das nossas recordações de vida pessoal para que, desta forma, não parecesse que fossemos trabalhar em primeiro lugar?
Numa atualidade em que o mote é “Working from home, homing from work” e em que, nas palavras do filósofo Byung-Chul Han, “o excesso de trabalho e desempenho se agudiza numa autoexploração”, a realidade desta ficção pode parecer cada vez mais presente.
Innies, outies e o paradoxo da liberdade
“Severenace” apresenta-nos Mark (Adam Scott), funcionário especialista em refinamento de microdados na Lumon Industries, uma empresa que recorre a um método inovador que oferece a possibilidade de separar as memórias de trabalho das memórias da vida pessoal.
Apesar de se mostrar bastante convicto de que o processo de “separação” é altamente benéfico e uma opção individual que não deve ser contestada, as motivações do protagonista são outras. Mark optou por separar as suas memórias para conseguir cooperar com a morte da sua esposa, que faleceu num misterioso acidente de viação.
A série insere temáticas como o livre arbítrio, o autoritarismo, a liberdade individual e o luto, num enquadramento ficcional, em que a linha entre a utopia e a distopia é ténue, pelo menos, até determinado ponto da ação narrativa. Apesar de já se falar em implantes cerebrais transformadores, o conceito projectado por “Severance” parece constituir, ainda, uma realidade longínqua. No entanto, e apesar de não existir uma relação direta ao nosso quotidiano, é pertinente olhar para o paralelismo que a série traça com a sociedade atual e a aproximação do seu conceito ficcional ao real.
No livro “Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han descreve a atualidade através do termo “sociedade do desempenho”, que contrasta a ideia de Foucault de “sociedade da disciplina”. O sujeito contemporâneo, que anteriormente se encontrava oprimido pelas instituições, encontra-se agora reprimido pela sua própria convicção e incessante determinação do alto desempenho e da produção. Nas palavras do filósofo sul-coreano, o indivíduo contemporâneo é um “empresário de si próprio”, transgredindo assim o conceito de Foucault de “sujeito da obediência”. Esta mudança de paradigma, marcada pela necessidade de melhorar a eficiência laboral e o desempenho profissional, resulta, muitas vezes, em esgotamentos, depressões ou burnouts (ler entrevista ao Psiquiatra e Investigador Pedro Morgado).
Segundo Byung-Chul Han, o que leva ao estado de debilidade não é necessariamente o “excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho”. A transição de um “ser obediente” para um “ser empreendedor” desencadeia uma falsa sensação de liberdade e, desta forma, o espírito do “ser empreendedor” acaba por servir, em maior escala, os interesses do capitalismo e da doutrina neoliberal, pela forma dissimulada em como atua.
A insistência na maximização do desempenho traduz-se numa sensação de liberdade compulsiva. “Chefe de si próprio”, o indivíduo é levado à autoexploração com base num processo de coação intrínseco e ao perseguir persistentemente a independência face às instituições, acaba por tornar-se refém de si mesmo. Incentivado pelo excesso de reforço positivo e coagido pela sua própria vontade, o indivíduo pós-moderno acaba por atingir um nível de desempenho e eficiência mais substancial.
A ideia de que o “sujeito do desempenho”, como define o filosofo sul-coreano, é livre e independente das instituições que o poderiam explorar pode não parecer relacionar-se, em primeira análise, com a premissa proposta pela série “Severance”, antes pelo contrário, no entanto, é pertinente considerar que para se libertarem do trabalho as personagens da série devem, imperativamente, comprometer uma parte constituinte do seu “eu”. O processo de “separação”, desencadeia, assim, uma espiral de auto-exploração. Desta forma, o mundo do trabalho passa a definir todo o plano de existência dos “innies”, a parte do “eu” que se dedica a cumprir as horas de trabalho dos “outties”, o self exterior que, por sua vez, escolheu enclausurar uma parte da sua consciência. Nas palavras do fundador da Lumon Industries, Kier Eagen: “The surest way to tame a prisoner is to let him believe he’s free”.
A posição de Mark relativamente aos opositores da “separação” é quase sempre excessiva e radical, pois acredita que tentar controlar este tipo de processo se traduz numa afronta à liberdade individual do cidadão norte-americano. O protagonista apresenta convicções altamente vincadas sobre a “separação” e julga, inclusivamente, que o modo como atua no seu quotidiano o tem ajudado a cooperar com o processo de luto. Ao esquecer-se da tragédia que é o falecimento da sua esposa, a dor parece atenuar-se, uma premissa semelhante à de “Eternal Sunshine of The Spotless Mind” (2004), de Michael Gondry e Charlie Kaufman, no entanto, a tristeza enterrada no âmago de Mark e parece transpor-se para o seu “innie”, independentemente do seu “eu” consciente no interior da empresa não estar familiarizado com o seu contexto pessoal.
A separação das memórias é um conceito relativamente simples, no entanto, as implicações filosóficas que levanta são altamente complexas. Perante o estado de “tábua rasa”, sem quaisquer memória do passado, mas com todos os conceitos que permitem um entendimento geral do mundo presentes, resta uma questão por responder: “quem sou eu?”. A ausência de uma reposta desencadeia a ação narrativa de “Severance” e concede ao espectador um novo plano de análise sobre temáticas de natureza ética relacionadas com identidade e memória.
Após compreender o que os traz ali, os “innies” são deixados com uma nova interrogação: “porque faria isto a mim mesmo?”. Porquê condenar uma parte da própria consciência a uma existência de Sísifo na qual, dia-após-dia, a violência da rotina oprime a vontade e condiciona a liberdade?
Culto do líder e smartpower
A necessidade em manter um ritmo alucinante de desempenho profissional tem vindo a demonstrar-se uma constante da sociedade contemporânea e surge frequentemente acompanhada pela cultura “hustle”, apregoada pelos gurus da produtividade, a par de um leque vastíssimo de livros de auto-ajuda ou até de podcasts sobre como obter o mindset correto para ser um empreendedor. Situamo-nos numa Era em que os empreendedores se tornaram messias e os CEO’s deuses, algo a almejar, uma possibilidade alternativa e uma meta instaurada pelo discurso messiânico do neoliberalismo que promete, mais que felicidade, realização. O CEO torna-se um modelo e uma referência, as suas ideias constituem as aspirações de milhões de pessoas que acompanham os discursos e defendem os seus interesses sem os compreenderem na totalidade. As altas figuras do empreendedorismo tornam-se, assim, projeções de um ideal passível de atingir, independentemente do contexto social de cada um, constituindo, na grande maioria dos casos, uma fantasia.
Em “Severance”, as várias gerações de CEO são representadas como autênticas divindades. Kier Eagen, fundador da Lumon Industries, é visto como uma autoridade paternalista que sabe o que é melhor para cada um dos seus funcionários. Lemas plasmados num rulebook da empresa, como “Come now, children of my industry, and know the children of my blood” ou “Let not weakness live in your veins. Cherished workers, drown it inside you. Rise up from your deathbed and sally forth, more perfect for the struggle”, inspiram os trabalhadores do piso da “separação” que, por sua vez, recorrem a expressões como “pelo o amor de Kier!” para mostrar surpresa, por exemplo.
O busto do fundador decora, em grande escada, o principal hall da empresa e existe, inclusivamente, um museu com figuras de todos os CEOs, os slogans que cada um apregoava e um modelo da casa de Kier para visita.
O culto de libertação através do trabalho não é produto imediato da ficção, nem constitui, tão pouco, uma novidade. É uma das doutrinas mais relevantes em regimes autoritários. “O trabalho liberta” (“Arbeit macht frei”) era um dos lemas da Alemanha nazi, inscrito, inclusivamente em portões de campos de concentração, inicialmente designados por “campos de trabalho”.
O processo de “separação” representado em “Severance” é, afinal, “lobo em pele de cordeiro”, visto que para atingir um equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho é fundamental aprisionar a consciência completa de uma parte do “eu” para que a outra possa ser completamente livre. “O trabalho liberta” mas não apenas neste sentido. Quando a personagem de Helly (Britt Lower) acorda no piso da “separação”, os seus colegas reforçam sistematicamente a ideia de que quanto mais cedo assimilar e assumir esta nova realidade mais rapidamente poderá usufruir do escritório. Ao cumprir com a quota de trabalho, as personagens são recompensadas com “waffle parties”, “gadgets”, acessórios para as suas secretárias de trabalho. Na ocasião de cumprir com os objetivos trimestrais, o funcionário é presenteado com uma figura 2D de Kier, no seu computador de trabalho, que o saúda com uma mensagem de reforço positivo e aprovação, a par com um “I love you!”.
A presença da figura e da filosofia do líder inviabiliza a procura de respostas. Para quê questionar se todas respostas estão inscritas no grande manual de normas? Mesmo quando os funcionários procuram aliar-se a outros departamentos para descobrir a verdade, são coagidos a regressar ao seu local de trabalho e a evitar a interação com outros trabalhadores fora do seu espaço de trabalho. Numa das cenas, o Departamento de Refinamento de Microdados procura juntar-se ao departamento de Ótica e Design para desvendar os segredos da empresa e a interação é rapidamente travada pelo responsável que fiscaliza os locais de trabalho. Esta alegoria à repreensão do discurso sindical e à união dos trabalhadores é particularmente relevante no contexto das grandes multinacionais norte-americanas, no entanto, a premissa que sublinha é universal e constante a todos os locais de trabalho: é perigoso realizar um trabalho sem parar para o questionar.
A “Sociedade do Cansaço” não é a única obra de Byung-Chul Han com que o enredo de “Severance” se relaciona. Em “Piscopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder”, Han descreve um fenómeno designado “smartpower”, através do qual as sociedades democráticas parecem assumir uma nova forma de controlo do cidadão, não pela opressão nem pela subjugação direta, mas antes pela sedução. A ideia de liberdade capital e material parece camuflar a autenticidade da liberdade individual, com o objetivo de tornar o indivíduo não necessariamente complacente e obediente, mas antes dependente.
Alinhado com o pensamento de filósofos como Heidegger, ou mesmo Castells, Han destaca a forma como na modernidade a revolução tecnológica veio eclipsar as nossas interações com funções básicas do quotidiano, alterando a nossa perceção coletiva de realidade.
Em 1984, durante o intervalo do Super Bowl, a Apple lançou uma campanha de promoção ao Macintosh, assinada por Ridley Scott, que fazia alusão à célebre obra de George Orwell, “On January 24th Apple Computer will introduce the Macintosh. And you’ll see why 1984 won’t be like ‘1984’”. A grande multinacional de Steve Jobs alcançou a confiança dos consumidores por mostrar oposição ao “Big Brother”. Irreverente nos seus princípios, a tecnológica apelava à integração dos “crazy ones, outsiders, underdogs”, algo semelhante ao que pretende com a aposta em “Severance” na sua plataforma de streaming, ainda que exista alguma ironia nisso.
Break Room e Positividade Tóxica
Em “Sociedade do Cansaço”, Han refere que a depressão (ler artigo do Psiquiatra Henrique Prata Lourenço) pode constituir a repercussão patológica do excesso de atitude positiva. A humanidade intrínseca de cada um entra em conflito consigo mesma quando o mesmo enquadramento que apela à liberdade do “eu” o aprisiona e submete à constante e exaustiva necessidade de desempenho e melhoramento. Nas palavras do filósofo: “A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível”.
Não obstante a turbulência da “hustle culture”, a ideia de que a vida deve centrar-se em torno do trabalho tem vindo a ser desmistificada. Tendências como o “quite quitting”, um processo de demissão passiva onde o funcionário de uma empresa decide cumprir exclusivamente as horas estabelecidas pelo contrato de trabalho, são respostas aos horários excessivos e atitude de reforço positivo perante o cansaço extremo.
Em “Severance”, perante uma situação de esgotamento, a personagem Irving (John Turturro) é levada a realizar uma “verificação de bem-estar”. Lemas como “Não deixem a fraqueza viver nas vossas veias” e “Controlem as vossas emoções” encontram-se inscritos nas paredes da sala de espera. Durante a sessão, a terapeuta partilha alguns factos sobre a versão exterior de Irving, “O seu outtie é generoso, gosta de música e tem muitos discos, é amigo de crianças, idosos e loucos. É forte e ajudou alguém a levantar um objeto pesado…”. É pedido ao funcionário que desfrute de forma idêntica cada um dos factos que lhe são mencionados, sem mostrar preferência por nenhum em particular.
Através das sessões guiadas, “Severance” parece deixar um alerta à banalização do cansaço por meio dos mecanismos de cooperação do ego, o “innie” ganha um vislumbre da sua identidade e surge a necessidade de corresponder ao carácter do seu “outtie”. Realizado com rótulos como “corajoso”, “bondoso”, o trabalhador restaura alguma da sua sanidade mental, mesmo que a sua função exterior não corresponda ao que lhe é descrito e mesmo que o cansaço prevaleça.
Negligenciar as necessidades de repouso e menosprezar o cansaço pode resultar em graves consequências para a saúde mental e ainda que, perante o desespero, a tendência seja sucumbir aos máximos do pensamento anti-pessimista, é pertinente assimilar e reconhecer quando o cansaço e o sofrimento estão presentes ao invés de os enterrar em slogans de auto-ajuda.
No último capítulo de “Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han disserta sobre o conceito de “dopping cerebral” e “neuro-enhancement”, caracterizado pelo estado de positividade excessiva. A “sociedade do desempenho” sucumbe assim a um cansaço individual, assolador e isolador. Han menciona ainda a obra “Ensaio sobre o Cansaço” (“Versuch über die Müdigkeit)”, do filósofo alemão Handke, um texto que contrasta um tipo de cansaço mudo com um cansaço reconciliador, que desfragmenta a identidade através da ideia “mais do menos eu”.
Em “Severance”, a “break room”, espaço onde os funcionários são levados para repetir incessantemente uma frase até mostrarem genuíno arrependimento para com as suas ações, não é um espaço de repouso e reconciliação do “eu”, mas antes um lugar onde espírito de contestação é quebrado — surge a dualidade do nome, “break room“. Sem memórias e espaço para questionar ou contestar as personagens encontram-se reféns do espaço de trabalho, sem identidade e aprisionadas.
A série sublinha, desta forma, que fatores como identidade e personalidade são, em parte, constituídos pelas nossas recordações e experiências. Apesar de não edificarem a totalidade do nosso “eu”, as memórias definem as nossas ambições, vivências e propósitos. A determinado ponto do enredo, o protagonista lê um livro escrito pelo seu cunhado e acidentalmente deixado no escritório da Lumon. A obra, repleta de lugares-comuns, fornece o ponto de partida à ambição dos protagonistas. “Our job is to taste free air. Your so-called boss may own the clock that taunts you from the wall, but, my friends, the hour is yours”, lê-se numa passagem, que acaba por se tornar o elemento-chave que desencadeia e descreve a vontade do grupo de alcançar a liberdade.