Silva mostrou ao público português (e não só) o que é ser brasileiro
É fácil depreender a popularidade que o cantautor brasileiro Silva detém no nosso país, tendo em conta as seis lotações esgotadas para os seus espectáculos no Capitólio, em Lisboa. Numa jogada raramente vista, o artista decidiu marcar duas sessões para cada dia, de forma a colmatar a intensa procura de bilhetes. Nós estivemos presentes na primeira delas, na qual se sentiu uma certa agitação associada a um espectáculo com moldes tão diferentes. A plateia sentada demorou até encher, com alguns atrasos do público, que foi chegando até depois do concerto ter começado. A agitação demorou a dissipar, o que acabou por acontecer graças à música e atitude de Silva.
Em formato duo, quase acústico, a sua música doce tomou contornos despreocupados, concentrando no palco uma tranquilidade impressionante, que acabou por tomar conta da sala. O design cénico do palco, com tiras de tecidos multicolores penduradas do tecto e dispostas simetricamente, ainda mais ajudava a criar uma sensação de paz e equilíbrio. Toda a conjuntura do espectáculo evocou um Brasil de tempos idos – ou pelo menos de locais mais isolados –, da calmaria e do calor que aquece o coração.
A voz de Silva é a personagem principal, com o seu timbre sedutor, mas inocente, que se espalha pela sala como mel. A guitarra de acordes leves acompanha-a maravilhosamente, na emulação da música popular brasileira e bossa nova que é tão fácil de gostar. Para além desses dois elementos, a bateria e programações de Hugo Coutinho adicionam camadas sónicas e tons mais graves, que puxam as palmas do público. Logo numa das primeiras canções, “Guerra de Amor”, a conjunção bem sucedida de todos os elementos é notória. A batida leve provoca-nos aquele baque surdo nos ouvidos, amenizado pela melodia fantástica da guitarra. Só faltou o trompete delicioso de uma das músicas mais quentes que ouvimos nos últimos tempos.
Para além da música, temos ainda a personalidade afável de Silva, que vai usando as pausas entre canções para se aproximar do público, com histórias que aprofundam a sua narrativa brasileira, bem exposta no mais recente álbum, cujo nome é a sua própria nacionalidade. “Prova dos Nove”, uma canção no estilo clássico das bossas lentas, foi introduzida com a história de como Silva a ouviu pela primeira vez, pelas mãos do namorado da sua sogra, que a compôs. Foi a primeira vez, ao fim de cinco canções, que se fez silêncio absoluto na sala. A letra acerca de um amor platónico impôs a atenção do público, sem a necessidade de solenidade excessiva ou catarses emotivas. Há algo na entrega de Silva que nos faz perdoar-lhe tantas letras açucaradas acerca de amor, talvez por ser tão irresistivelmente apaixonante. Tão embevecidos estamos, que a meio nem nos apercebemos que acaba por ficar sozinho em palco apenas com a guitarra.
Fora o artista que víamos em palco, houve toda uma cultura prévia grandemente respeitada ao longo do espectáculo. Grandes astros orbitaram o concerto, como Gal Costa – cuja “Flor do Cerrado” desabrochou em palco, avançando mais e mais rapidamente a cada estrofe – ou Daniela Mercury, cuja garra imparável impressionou Silva no primeiro Carnaval do Rio a que alguma vez foi – apenas ao fim de 30 anos de existência, algo quase inédito para um brasileiro. Ainda ouvimos uma história acerca de Marcos Valle, que revelou a Silva o segredo de, no topo dos seus 75 anos, se manter com uma aparência tão jovem: acordar às duas da tarde todos os dias sem se sentir mal com isso. Numa sociedade tão workaholic, esta postura descontraída caiu como uma surpresa, especialmente vindo de Valle, artista tão prolífico. É a ele que é dedicada a também descontraída “Duas da Tarde”.
Saindo da chapa cinco das letras amorosas, “Milhões de Vozes” é manifestamente política. Escrita com Arnaldo Antunes no clima de incerteza pré-eleitoral no Brasil, a canção manifesta agora uma postura guerreira que terá de ser mantida ao longo dos próximos quatro anos. Desta forma, relembramo-nos que, para além do amor e do Carnaval, há outras lutas importantes na vida de Silva e de milhões de brasileiros.
Já perto do final, temos espaço para mais animação. A última canção antes do encore é um dos singles de Brasileiro, “A Cor é Rosa”, que o público acompanha com palmas e um pezinho de dança, levantando-se a pedido do cantor. Como não podia acabar assim de repente, ainda veio o truque do costume: guardar a canção mais esperada para o final. A popularidade de “Fica Tudo Bem” deve-se largamente a Anitta, mas a canção é inegavelmente viciante, algo manifestado nas pessoas, que rejubilam ao cantá-la a plenos pulmões. Mas, ainda antes de acabar, ficamos com um recado originalmente dado por Martinho da Vila: “A vida vai melhorar”, mantra repetido até à última nota.
Acima de tudo, este concerto revelou as virtudes de Brasileiro, o mais recente álbum do artista, pela forma como as canções soaram tão naturais – claro que isso também se deve ao à-vontade ao vivo de Silva, que merece ser visto uma e outra vez. Assim sem esperarmos, assistimos a um espectáculo que nos deu um lamiré do que é ser brasileiro: muita emoção, alegria e esperança. E o melhor é que o fez sem ser preciso um grande conceito ou sem ser pretensioso. No fim, fica mesmo tudo bem.