Sistema de crédito social chinês: uma distopia meritocrática?
O Sistema de Crédito Social chinês, possível graças à crescente informatização (com uma maior centralização e partilha de dados entre os vários sistemas e subsistemas sociais, em tempo real), propõe-se, por um lado, a recompensar quem exerce idoneamente a sua cidadania e, por outro, a punir quem não o faz. Funciona numa escala de pontuação individual que vai dos 600 até aos 1300 pontos, onde a oscilação dá-se em função do comportamento de cada cidadão.
Cuidar dos membros mais idosos da família, praticar caridade e ajudar os pobres, tomar iniciativas que influenciem positiva e utilmente as condições de vida do bairro, doar sangue, ser cumpridor nos seus compromissos fiscais e financeiros e praticar actos heróicos são alguns dos exemplos que permitem acumular pontos. Por outro lado, cometer crimes, ter comportamentos de risco na estrada, negligenciar os familiares idosos, espalhar falsos rumores, ou entrar em incumprimento das obrigações fiscais, são exemplos de comportamentos que resultam na subtração de pontos.
Aqueles que mantiverem uma boa pontuação contam com vários benefícios:
– Prioridade no acesso às instituições de ensino e ao emprego;
– Facilidades na obtenção de empréstimos e no crédito ao consumo;
– Facilidades no aluguer de automóveis e bicicletas;
– Ginásios gratuitos;
– Transportes públicos mais baratos;
– Esperas mais curtas nos hospitais e demais serviços públicos;
– Promoção facilitada nos diferentes cargos;
– Prioridade na atribuição de habitação pública;
– Diminuição e/ou isenção de impostos;
Aqueles com baixa pontuação poderão contar com as seguintes punições:
– Privação no acesso a determinados serviços públicos e menores benefícios sociais;
– Exclusão no acesso aos transportes de alta velocidade;
– Limitações nos empréstimos;
– Inelegibilidade para cargos públicos;
– Exclusão no acesso às escolas privadas;
– Exposição nas TVs e jornais daqueles que estão na lista negra;
– Até o toque de espera numa chamada de telemóvel poderá alertar para o estatuto de devedor/incumpridor da pessoa para quem ligamos.
Não bastando o problema bicudo da privacidade, note-se ainda que, pelo meio, surgem mais contornos totalitários:
– Subtrai-se pontos a quem protestar “ilegalmente” contra as autoridades;
– Ganha pontos quem elogiar o governo nas redes sociais e nos meios de comunicação;
– Perde pontos quem “difamar” o governo nas redes sociais ou meios de comunicação;
Não fossem os claros problemas na sua presente forma, claramente voltada para o aperto do controlo estatal sobre a vida de cada pessoa, para a diminuição da privacidade e para o estrangulamento da dissidência, diria ainda assim que a ideia central não é automaticamente má ou boa por si só. A análise depende muito mais da sua execução que poderá ser péssima ou apreciável, assim como o executor.
Como se costuma dizer, quem controla o controlador? É, aliás, o Calcanhar de Aquiles de qualquer sistema.
Se lhe retirarmos os Cavalos de Tróia que surgem pelo meio, onde se exige a vassalagem acrítica ao governo, assim como os aspectos mais abusivos no que diz respeito à invasão de privacidade, a ideia poderia ser bem mais interessante e até mais justa do que aquilo que encontramos na maioria das sociedades: uma organização social que realmente favorece e confere benefícios a quem trata bem dos seus, a quem se preocupa em exercer bem a sua condição de cidadania, numa espécie de tit for tat onde todos os envolvidos ganham se colaborarem entre si, perdem se forem egoístas e espezinharem os outros.
Gostamos de pensar que as nossas sociedades já favorecem quem é exemplar e muito se fala da sua suposta meritocracia, mas na prática não é bem assim: não é raro ver gente muito pouco recomendável em lugares de topo, seja nas hierarquias políticas ou empresariais, onde parece que a desonestidade e as más práticas acabam (tacitamente) por [re]compensar.
Em teoria, se bem implementado, creio que um Trump, por exemplo, não se safaria tão bem num sistema de crédito social destes, dado o seu historial, assim como seria teoricamente bem mais difícil para os Ricardos Salgados desta vida.
Um sistema de crédito social destes seria muito possivelmente o pior pesadelo – em jeito de distopia – de muitos daqueles que hoje falam à boca cheia da “beleza da meritocracia que temos”, quando no fundo sabem que tantos são beneficiados de forma injusta e nada meritocrática, com recurso a paraísos fiscais e não só, beneficiados quase invariavelmente em função do seu estatuto socioeconómico, numa sociedade onde, realisticamente falando, há pouca ou nenhuma mobilidade social, onde os filhos de pais pobres tendem a permanecer pobres e os filhos de pais ricos tendem a permanecer ricos, em média, ao invés de estarmos verdadeiramente perante algo aleatório ou pautado de acordo com a pretensa aptidão inata de cada pessoa, numa justa compensação pelo seu percurso de vida e pelo exemplar cumprimento dos seus deveres.