Sonho de uma manhã de verão: as caminhadas-concerto nos trilhos do Festival de Sintra
Um dos denominadores comuns entre a experiência de ouvir um concerto num estádio ou metermos “play” numa música no telemóvel é este: damos atenção: estamos a habitar um dado local, o nosso corpo está presente num determinado espaço físico. Embora poucas vezes demos atenção a este pormenor, a fruição da música, estou em crer, é inconscientemente afectada por esse lugar em que estamos, pelo contexto em que ocorre a nossa escuta. Um exemplo extremado: eu posso ouvir uma ária de ópera num camarote do Teatro Nacional de S. Carlos, ou exactamente a mesma peça enquanto tomo um duche na minha casa de banho. Em princípio, o potencial de fruição musical vai ser bastante diferente: na segunda, se calhar, posso até atravessar-me com o meu próprio contributo vocal!
Mesmo que não recorramos a contextos tão contrastantes, acontece frequentemente termos uma reacção (positiva ou negativa) relativamente às salas para onde é programado um concerto de uma banda que estimamos muito. Uma banda ser anunciada para um concerto no CCB ou no Campo Pequeno não é, de todo, a mesma coisa: não só ao nível de acústica, mas também das expectativas de participação do público, do próprio formato como o concerto está organizado. E não se trata apenas de escalas, de uma sala ser maior do que outra! Vai ser um concerto em sala fechada ou ao ar livre? O público está todo sentado ou está todo em pé? A “cultura” desta sala resvala mais para a participação do público ou para ouvintes silenciosos e atentos?
O espaço, e o contexto social interligado com o espaço, determinam a fruição musical. E é talvez por isso que a proposta de três caminhadas-concerto de música clássica, constantes na programação do Festival de Sintra, se torna tão apelativa. O desafio é este: tirar a música clássica da clausura; explorar a possibilidade de a reinventar com esta simples mudança do local físico e do contexto social em que ocorre a performance e a fruição.
“Se Sintra tem o seu festival, e se tem este património natural, pareceu-me evidente que se tinha de cruzar o potencial de ambos”, partilha Martim Sousa Tavares, o programador do festival. A natureza e a música casaram-se na sua ideia, e esse casamento traduziu-se para a programação: “Muita gente vem aqui pela magia da serra e se calhar nunca imaginou ser possível juntar os dois mundos“.
A escolha dos trilhos que o público é convidado a caminhar, e dos locais ao ar livre onde vão ocorrer estes concertos de bolso, coube ao programador em conjunto com a equipa da Câmara Municipal de Sintra. “Tentámos que os diferentes trilhos conjugassem a serra e o mar, deixando à escolha diferentes possibilidades”, diz-nos Martim.
Entre a agenda destes três concertos inclui-se um caso muito especial: uma caminhada que começará ainda de madrugada, e que culminará com um concerto do acordeonista João Barradas precisamente à hora do nascer-do-sol, no dia do solstício de verão (21 de Junho). Segundo nos conta o programador do festival, “o concerto ao nascer do sol tinha de culminar num local cénico e virado a nascente, para o público poder saborear o momento. Foi assim que chegámos ao Adre Nunes, que é um anfiteatro natural e absolutamente único”. Isto é, o local foi escolhido a dedo. Mas o músico também, como acrescenta: “pareceu-me ser a pessoa perfeita para abraçar o desafio de tocar na alvorada, a solo, no que será um momento certamente mágico“.
A Comunidade Cultura e Arte perguntou ao acordeonista como reagiu ao convite lançado por Martim Sousa Tavares para um concerto tão criativo. “Aceitei de imediato, (…) não poderia estar mais entusiasmado com esta proposta“, conta-nos João Barradas, embora, devido ao grau de dificuldade técnica do concerto que vai tocar, há várias semanas que prepara “não só a música que terei de interpretar, mas também a resistência mental e física; uma condição obrigatória para a execução destes programas”. O músico vai realizar a caminhada juntamente com o público, antes do seu concerto, pelo que será “um recital onde não estarei a preparar-me nos bastidores, em silêncio ou a preparar mentalmente as peças que tocarei antes de entrar em ‘palco'”. Quanto ao concerto em si, revela que “será um programa intimista”, também devido à dimensão da audiência, à proximidade física entre o público e o acordeão, e que o programa terá “uma estética algo ‘minimal'”.
Para quem não gostar de sair da cama tão cedo, o Festival de Sintra apresenta ainda duas outras caminhadas-concerto já num horário mais convencional (embora de convencional pouco tenha: quantos concertos assistiram às 10h da manhã?). Uma dia 17 de Junho, com a pianista Catherine Morisseau; e outra a 24 de Junho, com os Postcard Brass Band.
Catherine Morisseau também ficou “muito feliz pelo convite” para um concerto seu enquadrado numa caminhada-concerto. É um conceito que se adequa “tão perfeitamente ao que sou, os meus ideais e a maneira como gosto de encarar a vida e abraçar a minha música, de a dar a ouvir ao público. Como músicos, ficamos felizes quando somos convidados para um projeto que se inscreve nos nossos propósitos artísticos, de uma certa coerência com o que somos e sonhamos, com o que produzimos a nível artístico e pessoal”. Martim Sousa Tavares explica a escolha da artista: “A Catherine Morisseau é ela mesma caminhante assídua nos trilhos de Sintra. A música que toca presta-se a este diálogo contemplativo”. Catherine confirma-o, e sente-se “grata também por poder caminhar com o público e dar a conhecer lugares que adoro e que me inspiram muito na escrita da minha música”.
A artista traça um paralelo com o seu projecto de piano itinerante, no qual a artista deu, nos últimos anos, “concertos em sítios muito remotos e improváveis”. Catherine reparou “numa grande adesão do público aos concertos em cenários naturais e poéticos“. Para o concerto no Festival de Sintra, a pianista vai apresentar “largos trechos musicais ininterruptos”, juntando temas de piano solo do seu primeiro disco (“Myriades”) com temas do disco que se encontra a preparar actualmente, intercalados por “haïkus musicais em jeito de transição entre cada um dos temas, que compus para o efeito”.
Já a última caminhada-concerto estará à responsabilidade dos Postcard Brass Band. Falámos com Sérgio Carolino, membro do projecto, que se confessou feliz por poder integrar a programação “com este projeto de bolso com música de Nova Orleães”. Para o concerto em Sintra, a banda preparou um repertório que já é conhecido para os fãs daquele grupo, à base de Dixieland, socond line, Cajun, Blues, street funk… para além disso, irão ainda apresentar “alguns arranjos ao estilo Nova Orleães de um ou dois conhecidos standards da música conhecida como ‘jazz'”. Este concerto, segundo Martim Sousa Tavares, será “cheio de maresia, num ponto de vista excelente sobre o oceano, a olhar directamente para Oeste, de onde vêm os sons Dixieland que se irão ouvir“.
Regressando à reflexão com que abrimos este artigo, decidimos perguntar aos três músicos – João Barradas, Catherine Morisseau e Sérgio Carolino dos Postcard Brass Band – se também eles acham que a fruição musical é enriquecida, ou pelo menos modificada, pelos ambientes e contextos em que a ouvimos. E sobre as vantagens que nos trará procurarmos novas formas criativas para colocarmos o ouvido à escuta.
“Acredito sinceramente em todas as formas criativas para escutar música, desde que haja um conceito, uma mensagem clara e perceptível, afim de chegar a todos os ouvintes”, partilhou Sérgio Carolino, para quem o ecletismo musical e a fusão entre “formas de expressão musical, visual e corporal” serão “atual e futuramente uma forma de conseguir chegar a mais pessoas e dos mais variados estratos sócio-culturais”.
Catherine Morisseau sublinhou o bem que advém da recontextualização da fruição da música clássica em específico. “Acho que esta mudança de paradigma no modo de apresentar e dar a ouvir a música é uma lufada de ar fresco no meio musical de vertente mais clássica e erudita“, como nos disse. “Além de permitir mais interação com o público durante a caminhada antes do concerto, ajuda a deixar de lado o preconceito de que determinados estilos musicais têm de ser ouvidos só por ‘conhecedores’ e de maneira convencional e formal em salas fechadas. A música é uma linguagem universal por excelência, e levar a música a outros cenários, em particular este cenário tão belo que é a Serra de Sintra, encoraja o público a apreciá-la de outra maneira“.
Os músicos reflectiram ainda sobre a perspectiva do criador/performer, e não apenas a do ouvinte. João Barradas, que também acredita que “a fruição da música será enriquecida pela procura de novas formas criativas de a ouvir e de se expressar”, continua “a procurar um ‘espaço’ de performance que me possa ser útil a comunicar a ideia do compositor. De uma forma livre e simples“. E encontra na caminhada-concerto um potencial imenso nesse sentido: “A mudança de ‘cenário’ ajudará, com certeza, a suavizar uma certa responsabilidade criada pela seriedade com que nos relacionamos com o local onde interpretamos esta música, uma espécie de ritual. Essa cerimónia é necessária, essa seriedade é insubstítuível, mas ela já existe no dia a dia de quem estuda esta música, de quem preparar esse mesmo concerto. O próximo passo, será entregar a interpretação como de uma conversa se tratasse – calma, sucinta e compreensível“.
Os trilhos de Sintra serão literalmente o palco onde vão ocorrer estes momentos musicais tão apetecíveis. E o programador do festival garante que, caso haja procura por parte do público, para o ano irão certamente aumentar a oferta, em novos recantos da serra. Fica o convite a juntarmo-nos a estas caminhadas de prometida beleza!
Data, horário e local das caminhadas-concerto:
- 17 Junho – Catherine Morisseau (10h da manhã, Serra de Sintra)
- 21 Junho – João Barradas (05h da manhã, Serra de Sintra)
- 24 Junho – Postcard Brassh Band (10h da manhã, Serra de Sintra)
A Comunidade Cultura e Arte é Media Partner do Festival de Sintra.