“Spree”, de Eugene Kotlyarenko: quando a crítica às redes sociais é tão superficial como elas
Quando Kurt Kunkle, wannabe criador de conteúdo online, se cansa de ter meras dezenas de visualizações nos seus confrangedores vídeos de YouTube, a sua solução para atingir a tão desejada viralidade é… transmitir um vídeo em directo em que mata os passageiros que recolhe como condutor de uma app de rideshare. É esta a premissa de “Spree”, o filme de Eugene Kotlyarenko que vai até aos extremos da comédia e do terror num tom frio e calculista, propositadamente usado para fazer uma crítica à utilização das redes sociais. Particularmente, o filme aborda a falta de limites dos criadores de conteúdo online, que não vêem meios para atingir a fama, assim como a indiferença das pessoas que consomem esse mesmo conteúdo.
“Spree” é inventivo pelos veículos que usa para contar a sua história. A acção reparte-se pelo ecrã do telemóvel de Kurt, pelas câmaras de telemóveis das diversas personagens, por câmaras de segurança instaladas no carro de Kurt ou até do circuito de videovigilância da cidade. Assistimos à acção como se estivéssemos a ver um vídeo em directo no Instagram, com direito a comentários no ecrã — mais hilariantes que a maioria da acção do filme. Há que aplaudir a equipa que criou os visuais para o filme, pois as interfaces das aplicações estão impecáveis, assim como os créditos finais.
Kurt Kunkle é um vilão que inspira pena. É um jovem iludido e lunático, moldado pela sociedade do espectáculo em que se movimenta, pelo seu contexto familiar e pela sua própria personalidade desajeitada e pouco magnética. Joe Keery, o acarinhado Steve de “Stranger Things”, dá tudo nesta performance absolutamente credível e assustadora, que infelizmente não é nada difícil de transpor para o nosso mundo.
No entanto, é uma pena que estas qualidades sejam diminuídas pela história ridícula. Na tentativa de usar os próprios meios online contra eles mesmos, por vezes o filme desenrola-se demasiado como um desinteressante vídeo de YouTube — o que até poderá apelar a algum do seu público-alvo, quem sabe? Quando sai desses moldes e começa realmente a chegar à altura da louca premissa, tende a levar-se demasiado a sério ao tentar suportar a lógica absurda de que alguém esteja realmente a matar pessoas ao longo de um dia inteiro e não seja logo apanhado, porque as pessoas que estão a ver o vídeo acham que é a gozar.
Kurt vai-se cruzando praticamente só com personagens detestáveis, o que pelo menos torna as cenas dos assassinatos um pouco mais satisfatórias. Ainda assim, as caricaturas representadas em ecrã são demasiado levadas ao extremo devido ao argumento exagerado, no qual batalham o discurso woke/politicamente correcto e o discriminatório, sem que nenhum leve a melhor. Na tentativa de criar comédia absurda e chavões marcantes, o filme perde-se no comentário social que tenta fazer.
E esta sensação não melhora através de algumas proto-tentativas de redenção por parte das personagens. Estas estão condenadas a continuar iguais, por mais que tentem ser relativamente boas pessoas em algum momento ou abandonar o mundo das redes sociais, que o filme representa como inescapável. Essencialmente, “Spree” tenta consciencializar através do choque, mas sem que haja uma grande lição a ser retirada do mesmo, o que seria algo essencial para uma história assim. No fim, aquilo que o público poderá pensar é “ah, mas eu não sou assim tão idiota/louco/indiferente…” e depois vai perpetuar os seus hábitos de consumo de conteúdo indiscriminado.
Apesar de todas estas deficiências, “Spree” sempre vale uma visualização pela viagem alucinante em que Kurt nos leva e pela forma como o realizador Eugene Kotlyarenko escolheu contar a história: uma saga multi-plataforma hiperactiva e original que emula o mundo das tecnologias e das redes sociais.