“The Irishman”, de Martin Scorsese: um decalque de obras maiores
No ano de 1990, Martin Scorsese realizou “Goodfellas”, uma história de mafiosos, hoje em dia amplamente considerada a sua maior obra. Seguiram-se três décadas em que lançou títulos como “Bringing Out the Dead” (1999), “Gangs of New York” (2002) ou “Shutter Island” (2010), filmes que discutivelmente ficaram aquém do potencial e bravura que demonstrara nas décadas de 70 e 80 (com filmes como “Taxi Driver”, “The King of Comedy” e “Raging Bull”).
Trinta anos volvidos, Scorsese regressa à máfia italiana. Desta feita, seguimos a personagem do irlandês Frank Sheeran (um estóico Robert De Niro). Acompanhamo-lo ao longo de seis décadas: os tempos a combater na 2ª Guerra Mundial, o primeiro contacto com a máfia na década de 50, o envolvimento na esfera política norte-americana dos anos 60 e 70, e terminamos num lar de idosos no virar do século.
A primeira cena do filme decorre precisamente nesse lar. Logo aqui o punho de Scorsese é visível: o filme abre com uma steadicam shot, técnica característica do realizador, que nos guia pelos interiores do estabelecimento até se deter num envelhecido Frank Sheeran. O ambiente deprimente contrasta com a agitação da que é provavelmente a mais famosa steadicam shot da história do cinema: o plano-sequência no clube Copacabana, de “Goodfellas”. Na sua terceira colaboração, depois de “The Wolf of Wall Street” (2013) e “Silence” (2016), Scorsese e o cinematógrafo mexicano Rodrigo Prieto provam ser uma fantástica dupla. São várias as passagens marcantes que criam ao longo do filme, especialmente nos primeiros trinta minutos. A melhor cena de “The Irishman” ocorre ao minuto 23: um guarda-costas abandona uma barbearia por uns instantes; a câmara persegue-o pelo corredor, até que ele se cruza com dois homens que se dirigem ao sítio que ele deixou desprotegido. Sabemos o que se segue e Scorsese sabe que sabemos, pelo que deixa a câmara vaguear pelas lojas vizinhas e focar-se na montra de uma florista. Tudo isto ao som da deliciosa “Delicado”, canção gravada em 1952 por Percy Faith.
“The Irishman” é essencialmente um épico em quatro actos. O primeiro centra-se na amizade entre Frank e o chefe da máfia italiana da Pensilvânia, Russell Bufalino (Joe Pesci). No segundo acto, Frank é apresentado a Jimmy Hoffa (Al Pacino), o presidente do maior sindicato norte-americano de camionistas. Este segmento do filme funciona como um courtroom drama, no qual Hoffa – agora com Frank como braço direito – é investigado pela Procuradoria-Geral dos Estados Unidos. O terceiro ato é o clímax (mais não diremos) e, por fim, os últimos 40 minutos do filme desenham o epílogo.
Enquanto a primeira parte do filme é a mais impressionante ao nível formal, a segunda e a terceira são as mais divertidas, muito devido à interpretação de Al Pacino. Só em 2019, o actor já nos deu duas interpretações memoráveis: Marvin Schwarzs em “Once Upon a Time… in Hollywood”, no qual trabalhou com Quentin Tarantino pela primeira vez na sua carreira; e agora Jimmy Hoffa, também a primeira vez que trabalhou com Scorsese. Duas combinações perfeitas. Em “The Irishman”, Pacino canaliza o fervor de Tony Montana – papel que representou em “Scarface” (1983), de Brian De Palma – e entrega um Hoffa eufórico e obstinado. É talvez a melhor prestação de um actor secundário este ano, a par com – curiosamente – a de Brad Pitt em “Once Upon a Time… in Hollywood”.
Joe Pesci também merece uma menção especial, pois o seu Russell é o oposto do que o actor nos acostumou. Ao invés do instável Tommy DeVito que interpretou em “Goodfellas” e que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor Secundário, Pesci é magistralmente discreto no papel de Russel, um mafioso ponderado e sereno. É importante notar que estamos perante um quarteto de septuagenários: Scorsese (77), Pesci (76), De Niro (76), Pacino (79). Que todos eles alcancem este nível de entrega e execução é extraordinário.
Ora, como é que três actores a caminho das 80 primaveras interpretam cada um a mesma personagem ao longo de seis décadas? Com recurso a efeitos visuais. Grande parte do considerável orçamento de “The Irishman” (160 milhões de dólares) destinou-se ao desenvolvimento de digital deaging. Como o nome indica, esta tecnologia desenvelhece os rostos dos actores de acordo com a idade que se pretenda que aparentem ter. O resultado final é algo desconcertante: embora em Pacino e Pesci funcione perfeitamente, De Niro parece na maioria das vezes um boneco de cera, uma figura saída do museu Madame Tussauds.
Acompanhamos de bom grado estas três personagens durante os três atos, contudo a longa duração de “The Irishman” (210 minutos) começa a pesar quando chegamos ao epílogo. Scorsese dedica a porção final do filme a uma condenação da violência, ideia ausente nos seus filmes, frequentemente acusados de glorificar o crime. É uma mudança de tom madura e muito bem-vinda, mas infelizmente mal executada. A lição que Scorsese prega é a de que “quem semeia ventos, colhe tempestades”, mas é questionável se de facto as personagens de “The Irishman” pagaram pelo que fizeram.
O novo filme de Martin Scorsese é o seu primeiro gangster movie meditativo, porém ausente de grande introspecção. Em “The Irishman”, mais do que um mestre do cinema a reflectir sobre a sua extensa filmografia, Scorsese replica o que de melhor fez no passado – e o que de melhor outros fizeram (veja-se as várias referências a “The Godfather”, de Francis Ford Coppola). A sensação é a de que estamos perante uma compilação de greatest hits de uma carreira de 52 anos. Scorsese é sem dúvida um grande professor, mas as suas aulas já viram melhores dias.
Um conselho final: vejam o “The Irishman” de uma assentada só. Se viram os 180 minutos de “Avengers: Endgame” ou se já fizeram binge de todos os episódios de uma série num só dia, por certo conseguirão sentar-se durante 210 minutos.