The Last Of Us

por Leonardo Cruz,    30 Janeiro, 2023
The Last Of Us
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Contorno o arbusto tentando evitar uma espécie de gosma que cobre as suas folhas, o que obviamente não acontece. Recuo, por reflexo, encostando a zona por baixo do sítio onde termina a mochila num cacto bem afiado que se escondia na sombra. Quase pior que as dezenas de espinhos espetadas no rabo, que tento tirar sem conseguir ver, é o enxame de mosquitos que quer comer-me vivo. Uma chatice, esta, da natureza ter tomado conta. Já não sei há quantos anos dura… este pesadelo.

Foi no final de 2022 que tudo começou. Um final de ano extremamente chuvoso: cheias em Lisboa, no Porto, no Ribatejo, no interior alentejano e até no Algarve. Anos e anos de má concepção e construção de habitações, a que se juntou um inverno de pluviosidade acima da média e, não despicienda, uma crise energética que inflacionou os custos da electricidade, tornando incomportável para muitos a utilização de aparelhos de aquecimento; três fatores que culminaram num fenómeno global noticiado, nas primeiras semanas, como: “humidade”.

Hoje em dia, nenhum dos poucos sobreviventes desconhece o nome do responsável pelo estado pós-apocalíptico que vigora: Stachybotrys chartarum, o nome do fungo que sofreu uma mutação após a Grande Epidemia de Bolor de 2023. A proliferação fúngica através das paredes das casas, dos prédios e das escolas afectou uma população que convalescia de anos de Pandemia de Covid-19 que, por sua vez, debilitou pulmões e demais vias respiratórias, mesmo a quem não se havia apercebido. Os três invernos seguintes foram ainda mais rigorosos e a poluição no ar também contribuiu. Em 2026, por motivos relacionados com diagnósticos de asma, bronquite, falta de ar ou outras doenças pulmonares, três quartos da população desapareceu. Por alguma razão que a ciência não explicou ainda, os mais inteligentes foram os primeiros a cair: médicos, cientistas, os melhores alunos, todos dizimados.

Entre os que não sucumbiram, poucos são os que mantêm a sanidade mental, seja pelo choque de perder os seus entes mais queridos e/ou ver colapsar o mundo, seja por verem-se arredados do grupo de pessoas geniais do qual supunham fazer parte.

A grande maioria acabou por converter-se à nova religião de Nossa Senhora da Humidade, culto dedicado a Dona Laura, senhora sexagenária cuja aparição no início do Séc. XXI, em noticiário de horário nobre, já alertava para a ameaça da “humidade” — palavra que proferiu 10 vezes numa reportagem de 36 segundos, o que motivou os crentes mais ortodoxos a repetir o fatídico vocábulo a cada 3,6 segundos. São também conhecidos como Adventistas do Sétimo Dia de Arejo das Casas.

A ciência não confirma também a teoria de uma epidemiologista que, no seu leito de morte, sugeriu que o fungo afligia o cérebro dos infectados de tal maneira que estes acabavam por ter pensamentos repetitivos sobre o seu maior receio, motivando-os a repetir a palavra “humidade” várias vezes na mesma frase. Consta que as suas palavras finais foram estas:

Estou em crer que o fungo humidade aflige o cérebro dos infectados humidade de tal maneira que os mesmos acabam humidade por ter pensamentos repetitivos humidade sobre o seu maior receio, o que faz com que humidade repitam a palavra “humidade” várias vezes na mesma humidade frase.

O acontecimento transversal e inédito das primeiras mortes de pessoas que repetiam aquela palavra até à exaustão terá estado na origem do culto messiânico de Dona Laura, que hoje tem uma estátua gigante no centro desta cidade, embora a face da denominada “santa que profetizou o apocalipse” se encontre irreconhecível por impregnação de verdete.

Os infectados que não morreram sofrem de uma existência estranha, na qual parecem ser comandados por vontade alheia. Repetem também a palavra maldita, mas continuam a falar dos mesmos assuntos dos tempos anteriores à epidemia. São bastante perigosos porque transportam consigo não só um potencial infeccioso tremendo, mas também teorias malucas sobre as coisas mais inesperadas. Nos primeiros tempos confundiam-se com os crentes da nova igreja, por via do discurso, mas com o passar dos dias vieram a demonstrar um outro sintoma: a cegueira (também carece de estudos comprovativos).

E, por último, os sobreviventes que conseguiram resistir ao fungo, pelo menos até aqui — metade deles fanáticos religiosos.

Eis como uma infeção fúngica global transformou o planeta. Um mundo órfão dos mais preparados, onde apenas restaram uma espécie de mortos-vivos, cuja população aumenta a cada dia, e uns míseros sobreviventes que, por acaso do destino, ainda não foram apanhados pela doença: os últimos de nós.

Pouco importa saber agora de causas quando a única consequência possível é sobreviver. O desespero penetra-me o cérebro e o estômago: há quase três horas que não como nada. Já vi passar vários animais como coelhos, cabritos e até um javali, mas a minha inaptidão para a caça tornou-me vegetariano. “Mais vale vegano do que nabo”, é esse o meu lema. Ainda há dias sussurrei para uma miúda sobrevivente que literalmente se matava para apanhar um pato: “antes comer banana, do que ser banana!”. A resposta dela foi, contudo, inspirada em animais: “Porco!”. Por vezes, se tenho a sorte de encontrar latas de salsichas, enchidos ou algo do género, coloco a opção alimentar de parte, em nome da satisfação. O problema é que, para os encontrar, tenho sempre que sair de casa, o que já antes do fim do mundo considerava uma maçada. Se, por um lado, os supermercados agora têm muito menos gente, também é certo que não têm produtos. A solução é andar por aí a vasculhar as dispensas abandonadas, à cata do que houver. Não são poucos os perigos dessa procura.

Já nem falo dos cactos como aquele que acabou de lixar-me a parte onde acabam as pernas e começam as costas. Falo dos infectados. Os maluquinhos. Como aquele que se encontra neste momento no corredor do prédio onde entrei, e que está no topo do lanço de escadas que leva ao primeiro andar. Impossível subi-las sem passar por ele. As manchas de bolor na pele e o olhar vazio são as provas de que se trata de um infectado e não de um mero adventista.

Escondo-me atrás de uma palmeira tombada no hall de entrada, em silêncio total. Consigo ouvi-lo dizer qualquer coisa como “eu sei que a terra é plana humidade, o nome planeta contém a humidade palavra plana”. Atiro uma pedra para o outro lado do pátio, tentando atraí-lo pelo som e correr para as escadas em modo furtivo, logo que ele se desloque. Por azar, falho o lançamento: o calhau bate numa folha da palmeira e vai cair mesmo à frente da árvore. Os infectados são cegos, mas ouvem com muita clareza. O barulho da pedra fê-lo movimentar-se a passos rápidos na direção onde me encontro. Qualquer ruído será fatal. Rapidamente saco de uma pistola que encontrei há uns meses na mão cadavérica de um polícia, e aponto-a ao infectado que se aproxima a cada instante. O seu monólogo é agora quase ensurdecedor: “quem não toma vacinas humidade sou eu!”. Tenho a sua cara bexigosa em mira e preparo-me para disparar. Tremem-me as mãos e, não sei bem como, a pistola cai-me dos dedos. De uma forma inesperada, até para mim, consigo evitar que a arma se estatele no chão, parando-a no peito do pé — feito que não recordo ter almejado com qualquer outro objeto durante a vida — onde ficou quieta e silenciosa. Mas os nervos eram muitos e, com uma perna levantada, acabei por soltar um pequeno gás. Para cúmulo do azar, talvez porque o ar se afunilasse entre dois espinhos do cacto que não tenha conseguido arrancar, o som originado pelo descuido foi um tanto ou quando agudo, um assobio de retaguarda que me denunciou. Aquilo que na gíria militar se denomina de “fogo amigo”, mas que a minha veia de escritor chamaria de “delator musical”. Num piscar de olhos, o zombie estava à minha frente. Conseguia sentir os seus perdigotos.

E foi aí que o instinto de sobrevivência falou mais alto. Antes de ele completar a palavra “criptomoeda” já eu estava na rua, correndo como um louco a caminho de casa. De onde, de resto, não deveria ter saído.

Deixei a roupa na varanda para descontaminação solar, vesti o pijaminha com os dizeres “REAL MOFO” e pus-me a escrever no meu diário. É só mais um dia no fim do mundo. Tenho fome e está frio nesta casa. Raios partam esta humidade humidade.

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