“The Procession to Calvary”: uma galhofada de arte clássica
E se pegássemos em pinturas clássicas de mais de oitenta artistas diferentes, as recortássemos e dos seus locais, objetos e figuras fizéssemos um jogo? Foi isso que fez Joe Richardson, que, depois de Four Last Things em 2017, regressa com a sequela e traz de volta o humor à Monty Python, as animações pantomímicas, a música clássica e, no geral, muita parvoíce.
The Procession to Calvary tem um foco bem definido — é para rir. A narrativa é apenas um conto absurdo para expor o humor do jogo, que dura cerca de quatro a cinco horas. A escrita é brilhante, seja no humor, seja nos momentos mais sérios, mas, infelizmente, estes últimos compõem uma fração pequena do texto. Repleta de humor negro e de meta-humor, a aventura de Richardson é efetivamente um êxito da comédia para os apreciadores do género e o fio condutor que agrafa as piadas está bem integrado, levando até a um final com a sua própria mensagem, simples, interessante e bem comunicada. Para apimentar a escrita, há o uso de piadas sobre a produção do jogo que quebram, numa dose acertada, a quarta parede. Existem três fins e é fácil vê-los todos, contudo, só um conclui a mensagem. Há também alguns detalhes estilísticos nos diálogos como o uso de emojis ou de expressões modernas misturadas com o ocasional jargão antiquado.
Não há contenções morais nem religiosas e, se por aí estivermos virados, o escarnecer do sagrado é impagável. Apesar de tudo, a narrativa e as personagens podiam ter mais alguma profundidade, tal como tem, por exemplo, o músico depressivo, uma personagem extremamente bem escrita que consegue ser divertida e profunda ao mesmo tempo quando nos explica a angústia de ser um compositor preso na sua arte após ter atingido a excelência máxima.
Graficamente, o jogo salta logo à vista, já que a arte é feita por inúmeros artistas de renome, entre eles Bosch, Michelangelo, Vermeer, Rubens ou Raffaello, génios fáceis de contratar quando os direitos de autor já expiraram há centenas de anos. Com as pinturas destes “colegas de trabalho” à disposição, Richardson limita-se a editar e animar, e com imenso brio, diga-se, criando cenários impressionantes e engraçados que juntam vários quadros e elementos — ver a Santa Verónica de Memling a vender merchandise nas crucificações animadas de Provoost, Engebrechtsz e da Messina é uma desfaçada manipulação de contexto que nunca deixa de ter piada. As personagens também vêm de pinturas, com a protagonista da aventura retirada diretamente da obra Bellona, de Rembrandt. O aspeto geral é ótimo e a separação de planos está, regra geral, bem estipulada, tal como as perspetivas de cada zona, onde é sempre fácil navegar. As animações são comicamente ridículas e não estão nada mal, ainda que algumas fraquejem.
Esta é uma aventura gráfica muito tradicional e simplista, pelo que não é de esperar grande inovação na jogabilidade. O design dos puzzles é especialmente competente e tem um nível de desafio muito ajustado, pois pede poucas combinações de itens e restringe as áreas exploráveis — se ficarmos emperrados não há tanto espaço por onde divergir e acaba-se por descobrir a solução mais cedo do que tarde. Quem está habituado ao género não verá grande desafio, as soluções dos enigmas são sempre bem concebidas, enquadradas na narrativa e justas, ao contrário de tantos jogos point-and-click que utilizam soluções mirabolantes. As pistas subtis nos diálogos também premeiam a atenção e ajudam. O jogo tem também uma opção muito direta desde o início: em vez de resolver os puzzles, podemos simplesmente matar todos os que impeçam o nosso progresso, o que torna o jogo numa experiência de meros minutos com algum conteúdo diferente e um fim a condizer, contudo, fazê-lo é quase jogar outro jogo e não entrega, nem de perto nem longe, a verdadeira experiência burlesca de The Procession to Calvary.
Os controlos funcionam sempre bem, são apenas três botões e podem ser personalizados. O único defeito é mesmo a falta de centralização automática do cursor ao usar o menu verb coin, ou seja, se escolhermos uma opção várias vezes seguidas, o cursor vai fugindo até que clicamos fora do alvo e temos de voltar a pôr-lhe o cursor em cima; em itens pequenos, com menos área onde clicar, temos de fazer o ajuste várias vezes. No menu de gravação, os slots no não têm a informação do ficheiro, pelo que não dá para distinguir entre gravações sem decorar o número do slot; os menus também não têm highlight no hover, o que causa estranheza de início.
Tal como no visual, o jogo brilha no som pelas mesmas razões, pois somos recebidos com composições de Handel, Vivaldi, Bach, Beethoven e companhia. O uso das músicas acerta em cheio e são todas tocadas por músicos no cenário, pelo que a banda sonora é diegética. Se interagirmos com os músicos, a protagonista informa-nos de que composição se trata, uma adição sempre louvável. Os efeitos sonoros são cómicos e também escolhidos a dedo com sucesso, mesmo os gritos estapafúrdios e outras interjeições, mas é o som do desembainhar da espada que é particularmente delicioso.
Apesar de uma apresentação impecável e limpa, as ideias são, em grande mérito, sujas e de baixo nível, o que até captura muito bem o espírito renascentista, onde, na realidade, o obsceno tanta vez se entrelaçava no belo. É verdade que a obra de Richardson não evolui muito a fórmula desde o último jogo, mas está mais polida. Arredando as farpas na animação, nos menus ou nalguma parte mais rasa da escrita, The Procession to Calvary é uma ode ao grotesco com uma escrita animada e pungente. A alma rabelaisiana deste point-and-click é a sua maior virtude e, acompanhada duma arte bem manipulada, duma sonoridade escorreita e duma jogabilidade calibrada que pactua perfeitamente com o teor narrativo da aventura, oferece uma experiência cómica de luxo para quem se identificar com o seu espírito.