“The Shattering”: o desconstruir de uma ilusão
Enfrentar o trauma revivendo o passado é a única forma de derrotar a fantasia perfeita em que John Evans se refugia. Este é The Shattering, um thriller que promete uma viagem ao interior da mente conturbada de John através de uma sessão no psiquiatra, onde, instruídos pelo doutor, vamos explorar a história de vida do protagonista.
A forma como os eventos se erigem e desmontam progressivamente está bem conseguida e é espelhada nos diálogos e no texto que o protagonista cria como escritor, contudo, a narrativa foge a si mesma às vezes, virando-se mais para o vago do que para o substancial quando devia fazer o oposto, já que o surrealismo embelezado do trauma recordado necessita de uma base narrativa estável. A entrega da experiência é muito original e imersiva e The Shattering é capaz de ser psicologicamente relevante, apesar de no fim a mensagem perder força. O jogo é impactante em tudo o que diz e faz, mas não tem a faísca que sai do ecrã e incendia o jogador, muito por culpa da falta de plurivocidade do tema, que chega muito nu ao clímax.
O estilo visual é muito agradável com o preto e branco a ajudar no aspeto surreal necessário e a permitir-nos compor o cenário na nossa imaginação. A luz tem um rasto progressivo ao ligar/desligar; as texturas e os modelos são bons; o uso minimalista da cor funciona bem; os cenários estão bem concebidos; e a interface é boa. Apesar do mérito visual, há falhas na otimização, o que causa problemas de desempenho; nas sombras e efeitos visuais (alguns estão mesmo em falta); e no uso de espelhos, um perigo necessário em que decidiram arriscar, com consequências óbvias.
Quando as coisas são angustiantes para John, são também para nós — o fervilhar da ansiedade é contagiante e isso está bem feito, ainda que pese a falta de polimento, havendo paredes invisíveis sem motivo nenhum e atraso na resposta no controlo da movimentação. The Shattering é engenhoso na forma como comunica, embora com alguns problemas de ritmo na jogabilidade, havendo sempre um certo avanço das set pieces narrativas, que deixam o jogador ligeiramente para trás. O facto de haver tantas gavetas vazias e itens irrelevantes com que se pode interagir gera solavancos na imersão. Podemos tomar decisões no jogo, na maioria opções de diálogo, mas não têm impacto nem garantem diferenças na resposta, ainda assim, há quatro escolhas que podem ativar um final alternativo. É de lamentar como temos de passar por vários testes de Rorschach que não servem de nada. As escolhas opacas geram um conflito claro com a personalidade bem assinalada do protagonista — se é para sermos sobretudo um espetador, algo totalmente aceitável num jogo expositivo, então oferecer escolhas ao jogador, extraindo-lhe algo pessoal, é contraditório e mancha o registo do jogo. Bifurcações na narrativa seriam apreciadas nesta de jornada de psicologia e autorreflexão, mas não com um protagonista tão bem estabelecido como é John Evans, facto que parece limitar o espaço de manobra do estúdio.
A atenção ao detalhe é muito fraca e existem inconsistências por todo o lado. Não vale a pena enumerar tudo, mas há nomes de pessoas que mudam do nada, adereços com informação incorreta para a época, água fria que fumega, ortografia britânica em documentos americanos e muito mais (sem justificação narrativa, claro). Também é fácil saber o que vai acontecer a seguir quando já há nos reflexos dos espelhos o que ainda não apareceu em cena. É verdade que a importância do tempo no contexto de jogo é diferente, mas se se dão ao trabalho de alterar as horas do relógio para cenas matinais, não faz muito sentido não o fazerem noutras alturas que o justifiquem, e como o jogo está cheio de relógios, esta incoerência torna-se mais notória. Por um lado, são pormenores, por outro, é importante perceber que a coerência no detalhe é essencial para a imersão total e para a distinção entre o bom e o excelente, e estas falhas, muitas de cariz amador, deixam um sabor amargo e talham a qualidade.
No som, as personagens com mais diálogo estão bem interpretadas, mas os figurantes são bastante medíocres e têm falas mal misturadas. A música não está mal, mas não ressalta. Os efeitos sonoros limitam-se a cumprir: por exemplo, o abafamento de som é competente, já os sons da passada rápida não são naturais.
Jogar uma segunda vez é muito aconselhável, tudo ganha nova vida, a história torna-se menos vaga nos pontos que quer estabelecer e podemos detetar mais facilmente os prenúncios do jogo, que, revelado precisamente por esta nova perspetiva, mostram-se um pouco mal aplicados e ambíguos para o primeiro contacto.
The Shattering sabe o que quer e consegue apresentá-lo de uma forma verdadeiramente excecional no ecrã do jogador, fazendo bom uso do design narrativo e da criatividade, todavia, debate-se com o polimento, seja nos detalhes mais técnicos ou na própria escrita, que complexifica o que é simples quando o surrealismo do visual já o fazia bem sozinho. Nota-se inexperiência, sendo fácil adivinhar que esta é a primeira obra do estúdio, no entanto, elogie-se o potencial, porque se é esta a primeira, esperam-nos certamente bons jogos no futuro. Fechando os olhos às imperfeições, quem tiver interesse na história introspetiva do protagonista e no metaforismo psicológico que a cinematografia e interatividade do jogo oferecem saberá com certeza como apreciar esta aventura.