The Tallest Man on Earth na Aula Magna: intimidade escrita a dedilhado
Há qualquer coisa de comum entre um músico que se apresenta a solo num palco de grandes dimensões e um trapezista sem rede de segurança. Kristian Matsson, sozinho entre uma acolhedora instalação de paralelepípedos iluminados, apresentou-se sem filtros diante de uma Aula Magna muito composta, e ávida da folk do compositor sueco. Uma carreira com já quase década e meia – quatro álbuns e uns quantos EP’s – que se tem construído em torno de uma voz, uma guitarra, e uma sensibilidade melódica aparentemente perene. “When the Bird Sees the Solid Ground”, o trabalho editado no final do ano passado, é uma prova disto mesmo – a frescura destas composições, que frequentemente vai buscar a malhas inspiradas da guitarra a sua alma, conquista os ouvidos que as ouvem. E o jogo de luzes minimalista e eficaz só potenciou ainda mais a sua recepção.
Não seria nunca a falta de técnica que comprometeria o concerto do The Tallest Man on Earth na Aula Magna; assim como não se questiona nunca a capacidade de um trapezista sem rede. O risco, aliás, torna-se parte do espectáculo. E é dantesco: um homem à guitarra e os seus temas folk, que em alguns momentos roçam mesmo o country, dispõe-se a apresentar o seu reportório ao longo do par de horas seguintes. O processo está todo à vista, não há truques escondidos: a alternância entre a guitarra eléctrica, a acústica, o banjo e o teclado. A reverbação na voz – talvez exagerada, mas que se apresenta como opção deliberada. E a guitarra de som claro, os dedos rápidos mas com movimentos da mão direita praticamente invisíveis, com dedilhados inspirados que são parte do segredo das canções. Atente-se em “Then I Won’t Sing No More”: a história que a guitarra parece querer cantar, mesmo sem a ajuda de nenhuma palavra, é já vasta quanto baste.
Numa setlist recheada de clássicos, houve momento para a estreia de uma nova canção, que será lançada no decorrer dos próximos dias, e que teve direito a harmónica. Fomos os primeiros a ouvi-la – gravou-a há poucas semanas no seu apartamento, e fará parte do novo disco que sairá ainda no decorrer deste ano. Convenceu à primeira impressão.
Podíamos resumir o talento do sueco dizendo que The Tallest Man on Earth é, ele mesmo, melodia encarnada. Mas para lá da música há também o lado brincalhão da persona de palco que Kristian representa. Nos momentos mais freaks (palavra a que ele próprio recorre para se descrever) fita silencioso a plateia, e fala do privilégio que é poder ter tantos olhos fixos em si. Num longo monólogo que antecede o primeiro tema que tocou no teclado, “Little Nowhere Towns”, conta-nos que vendeu a alma à técnica de palco que o acompanha, e que agora não passa de um mero escravo-artista à sua mercê. “Estamos no matrix”, brinca, antes de acrescentar que nem sequer sabe o que está para ali a dizer porque não compreende inglês, e que foi a técnica que lhe exigiu que ele pronunciasse estes sons específicos. A narrativa surreal cria um equilíbrio divertido de que Kristian se serve para alternar entre os temas e fazer o concerto progredir. Mais adiante descerá para a plateia, senta-se num lugar vazio, e termina um tema voltado para o palco. “Soube bem estar aí em baixo com vocês – cá em cima torna-se solitário, tenho demasiada liberdade”.
Mas o homem mais alto da terra sabe usá-la muito bem. Com uma atitude muito teatral, mas ao mesmo tempo visceral e emotiva, passeia-se pelo espaço quase sempre meio curvado, por vezes de olhos fechados, batendo com os sapatos no chão a marcar batidas, mudando de direcção quando um acorde lhe desperta algo de novo. São talvez os melhores momentos do concerto: aqueles em que as malhas da guitarra se tornam selva de possibilidades, e ao mesmo tempo não perdem a base melódica simples que as caracteriza. Sem recurso a loops, tudo a acontecer na hora. Sabe bem testemunhá-lo.
Talvez duas horas e mais de duas dezenas de canções se aproximem de uma overdose desta fórmula – mas não levem a minha palavra muito a sério, porque foi emocionante assistir à devoção com que a plateia o aplaudiu de pé antes e depois do encore. O calor humano nos sorrisos das primeiras filas, as cabeças encostadas no ombro de quem se ama: quando a música fala ao coração torna-se difícil julgá-la com discernimento. Há ainda que referir que, apesar dos improvisos estreónicos de Kristian, também ele trata com muito carinho a plateia que ali está por ele. “Nunca tomarei por garantido o cuidado de comprarem bilhetes para me virem ouvir”. No cuidado mútuo a química acontece – e a Aula Magna foi pequena para acolher este abraço tão sincero.