The Weeknd ao vivo: sangue, suor, lágrimas e distopia
Já no início da tarde de ontem se sentia o pulsar de algo em Lisboa. Grupos de jovens com t-shirts de um artista em particular deslocavam-se freneticamente em direção a Algés, enchendo a zona como se em Julho estivéssemos e o NOS Alive estivesse prestes a acontecer. Mas não, era mesmo o concerto do ícone pop canadiano The Weeknd, um dos maiores símbolos de sucesso da música contemporânea e amado por miúdos e graúdos. Esgotado há várias semanas, o espectáculo teve toda a pompa e circunstância que se esperava, com direito a uma mega-produção que poucos artistas no mundo conseguem replicar.
A nossa chegada ao Passeio Marítimo de Algés, já pejado de gente, faz-se ao som de Mike Dean, notório produtor de hip hop e especialista em sintetizadores, que tem a sua própria carreira a solo. A música que apresentou é assumidamente retro-futurista, sonoramente paralela às mais recentes aventuras discográficas do homem da noite. A referência visual do megalómano cenário montado para o espectáculo de The Weeknd sugere uma forte ligação com o universo de “Blade Runner”, no qual a música de Mike Dean encaixa que nem uma luva, evocando néons citadinos e permanentes neblina e cacimba — que, na verdade, foi caindo ao longo do final de tarde e noite, como se fizesse parte do orçamento para o espectáculo. Os sintetizadores oscilavam entre o etéreo e o aterrador, ocasionalmente envolvendo um público habituado a instintos mais directos em surpreendentes barragens de ruído e distorção. Teria sido uma melhor introdução para o universo de Dawn FM se tivesse antecedido imediatamente o concerto de The Weeknd, já com menos luz do dia.
Até porque a soturnidade do ambiente foi quebrada pelo set animado e enérgico de Kaytranada, naquela que foi a sua segunda vez em Portugal. As batidas inconfundivelmente saltitantes do produtor e DJ haitiano-canadiano adequam-se a pôres-do-sol e festas à beira da piscina (como o prova o mais recente disco partilhado com o rapper Aminé, Kaytraminé — do qual ouvimos o eventual hit de Verão, “4EVA”). Com o céu carregado de nuvens e o humor geral do distraído público a pender mais para a ânsia e expectativa, o set caiu em saco roto. Não que não tenha sido uma delícia ouvir as incontornáveis “You’re the One”, “Lite Spots” (versão de “Pontos de Luz”, de Gal Costa) e “10%”, assim como um recente remix de “Cuff It”, de Beyoncé, simplesmente não foi o ambiente ideal para o fazer. Apesar de tudo, Kaytranada ainda puxou pelo público, clamou pelos seus “verdadeiros fãs” e permitiu-nos dar um pezinho de dança gostoso antes da principal atracção do alinhamento.
Antes de o espectáculo começar, tomámos uns momentos para analisar o invulgar palco de The Weeknd, que tinha como pano de fundo uma paisagem citadina; uma espécie de Gotham esquelética e metálica. As mega-colunas de som elevavam-se acima dos arranha-céus como gruas, contribuindo para o ambiente industrial. O design de palco confundia o nosso sentido de escala, levando-nos a pensar se realmente seríamos capazes de ter algum vislumbre de Abel Tesfaye. No entanto, ainda antes de começar o concerto, uma gigante lua insuflável encheu-se ao nosso lado, chamando a atenção para uma plataforma circular, unido ao palco por uma gigante passadeira, mediada por uma estátua rotativa de uma pessoa-máquina reminescente do filme “Metropolis”. Esta disposição dinamizou o concerto, aproximando artista e público num espaço tão massivo como o Passeio Marítimo de Algés.
Quando a gravação de “Dawn FM” começa a soar, somos recebidos no universo de The Weeknd. Uma turba de dançarinas, envergando túnicas brancas que lhes cobriam a cara, começou a marchar pela longa passadeira. Nos ecrãs, a visão era de pessoas caminhando em sincronia em direcção a uma cidade buliçosa e à enorme estátua; a cereja no topo do bolo que foi a aparente referência a “Metropolis”. Um culto à la “Handmaid’s Tale” ou uma crítica ao capitalismo? Não sabemos. A verdade é que a distopia representada neste espectáculo nem sempre foi clara, nem parecia estar muito relacionada com os temas de amor, luxúria e desespero presentes nas canções de The Weeknd. Se isso importa? Não propriamente. Isto é entretenimento, por isso desfrutámos imensamente da rave cataclísmica que se seguiria e do (literal) fogo que a certa altura deflagrou pelo cenário durante “The Hills”.
De cara coberta com uma máscara que mantém ao longo das primeiras canções do concerto, Abel entrou em palco elevando um elegante suporte de microfone que parecia um futurista bastão bíblico acima da sua cabeça, prenunciando algo épico. Ao longo de duas horas, passamos por praticamente todas as fases da sua carreira, num cocktail de R&B, hip hop, trap, new wave, funk e pop. Apesar de misturar estes géneros, a sua música, sempre produzida com brio, tem um elemento comum que a eleva: a voz inegável de Abel Tesfaye. Para além de parecer brotar de si sem qualquer esforço, como se de uma nascente de água se tratasse, o seu vibrato natural confere vulnerabilidade a qualquer letra que cante. Por mais que ocasionalmente nos lembre de Michael Jackson ou Prince, o seu timbre é muito seu e, quando unido à personalidade megalomaníaca e auto-destrutiva de The Weeknd, é inconfundível.
O artista mostrou-se interactivo ao longo de todo o espectáculo, olhando directamente para os fãs e cantando com eles, para além de elogiar os espectáculos que deu em Portugal. Recordou os concertos de 2012 no Primavera Sound (antes de cantar “Wicked Games”, um dos seus primeiros sucessos) e de 2017 no NOS Alive, que aconteceu naquele mesmo recinto. Depois de cantar “I Feel It Coming” e “Die For You”, junto à gigante lua que agiu como centro emocional do recinto, comove-se com a enorme ovação do público devoto. A certa altura, morde o lábio por acidente e sangra um pouco. “Olhem como sangro por vocês, Portugal”, diz-nos com uma mancha vermelha na sua luva branca. Incansavelmente, ao longo daquelas duas horas, The Weeknd deu ao público sangue, suor e lágrimas.
A cada canção reconhecida pelo público, a efusão era fervilhante. Os gritos ensurdecedores somavam-se e, de telemóvel em punho, o público (maioritariamente) jovem filmava os seus momentos preferidos. Aliás, Canções como “Starboy”, “Save Your Tears” e a incontornável “Blinding Lights” compuseram alguns deles. Reservada para o clímax do espectáculo, “Blinding Lights” é um daqueles êxitos transversais, ou não fosse ela a canção mais reproduzida da história do Spotify, e a sua apresentação esteve à altura da expectativa.
Quando o público achava que não haveria mais, Abel ascende ao topo de um dos edifícios e junta-se à banda que musicou a nossa noite (por mais que fosse difícil perscrutar a banda por entre o cenário pós-apocalíptico, confirmou-se que há instrumentação verdadeira neste espectáculo) para as últimas canções. Depois de 28 canções em que passou revista a toda a sua carreira, olhou então para o presente mais recente, atirando-se a “Creepin’”, canção de Metro Boomin na qual participa, e a duas canções da sua mais recente aventura: a controversa série “The Idol”. Aliás, Portugal teve direito à primeira apresentação de “Popular” ao vivo. E foi assim o final do mega-espectáculo de The Weeknd em Portugal, com a promessa de que o regresso não seja tão demorado.
Nota final: o entusiasmo do concerto manteve-se durante alguns minutos até à hora de regressar a casa. Ainda que não seja culpa do artista, é impossível não mencionar neste artigo os absurdos constrangimentos de trânsito que condicionaram o regresso daquelas dezenas de milhares de pessoas a casa, devido a deficiências na articulação entre produção, empresas de transportes e câmara municipal. Em vez de se facilitar a deslocação das pessoas, fechos de vias, bloqueios de entradas, greves e outras dificuldades geraram situações completamente indignas de uma cidade que se quer apresentar ao mundo como moderna e capaz de receber eventos à escala mundial.