“Titanic Rising”, de Weyes Blood: a gloriosa emersão da nova pop barroca
Só acontece de vez em quando; mas acontece. A espera pelo próximo grande filme ou pelo álbum mais importante dos últimos meses pode assemelhar-se a uma espécie de confiança no vazio. Mas a experiência verifica que, eventualmente, o mundo da arte lá é enriquecido com mais uma obra-prima, que vem incorporar o vasto repertório das coisas que merecem ser vistas ou ouvidas. Os artistas são essa classe anónima e dispersa que escava com as mãos um terreno árido, na procura (mais ou menos consciente) de um tesouro. Volta e meia acontece. Um objecto novo que, pela sua presença, sugere não querer ser esquecido. Este nasceu da cabeça de Natalie Mering – artista californiana, conhecida profissionalmente como Weyes Blood. Titanic Rising vem juntar-se ao panteão do melhor que a art pop viu nascer esta década.
Uma ressalva importante: não falamos de um álbum de estreia, de uma artista-novidade acabada de chegar, carregada às costas pelo hype de uma qualquer editora que tenha investido a peso de ouro na estratégia de marketing. A carreira de Weyes Blood não tem uma linha de partida bem delineada, mas aos quinze anos já compunha (hoje tem trinta). Inicialmente o seu percurso é pautado pelo lo-fi e pela música experimental, lançando os seus primeiros trabalhos de forma independente, e apresentando-os em pequenos palcos na cena underground norte-americana. Mas em 2014 passa a ser representada pela Mexican Summer, o que lhe angariou maior visibilidade e acesso a palcos maiores. Ao mesmo tempo, a música tornava-se mais calma e etérea. Front Row Seat to Earth, o seu anterior álbum, teve direito a apresentação no NOS Primavera Sound de 2017. Foi um concerto escondido no palco mais pequeno do festival, para uma plateia diminuta; quando o vi, na altura, e motivado pelo carinho que sentia por aquele seu disco, parecia que estava a ser testemunha de um segredo.
Esse segredo vem evaporar-se definitivamente com o lançamento de Titanic Rising. O título já prometia. A capa do álbum também. Felizmente a música – o que realmente interessa – veio confirmá-lo. Após o lançamento dos primeiros singles, passou a esperar-se qualquer coisa de especial. E é verdade: temos um novo épico da pop alternativa, numa sonoridade que, à semelhança dos seus anteriores trabalhos (mas aqui elevado a um expoente de qualidade muito mais apurado) cruza o barroco com o progressivo. Em duas sintéticas metades (tanto o lado A como o lado B são compostos de quatro canções mais um epílogo instrumental), Weyes Blood desenhou um trilho conciso e emocionalmente interpelativo. Por meio de uma composição simultaneamente intrincada e acessível, Natalie leva o ouvinte por esta viagem que sabe a renascimento, que tem faísca, que é uma reviravolta e um turbilhão.
O álbum tem início com o tema “A Lot’s Gonna Change”. A música vai buscar a propulsão à comovente sequência de acordes do piano, abrindo-se no refrão para uma importante incursão vocal. Mas atente-se aos pormenores: a progressão da bateria, os pontuais sopros que surgem aqui e ali. Tudo isto envolto numa ambiência barroca profundamente inspiradora. É um exemplo praticamente imaculado do melhor que a pop e os arranjos orquestrais podem fazer juntos.
“Andromeda” reúne numa cápsula de cinco minutos o processo de composição de Weyes Blood. À semelhança da anterior, o percurso melódico imprevisível insiste em não largar as rédeas da síntese. Podíamos falar da percussão tribal e discreta, que abre o jogo para um novo contexto sonoro. Mas o que verdadeiramente rouba o holofote em “Andromeda” são as guitarras, que surgem com uma elegância desconcertante; vão-me perdoar a metáfora, mas a beleza da guitarra, tanto nesta faixa como na “Something to Believe”, recordam-me a emoção que sinto diante de um amorti, no ténis. Uma suspensão da intensidade, o encontro do valor na contenção. Um toque que fica aquém, que se resguarda, que surpreende, e marca ponto. Mais um arrepio.
Sim, estas guitarras slides recordam-me alguns solos dos Pink Floyd, ou mesmo de George Harrison dos The Beatles. Os coros de “Everyday” não estão distantes do som dos ABBA. Weyes Blood parece canalizar uma série de influências que ali confluem e se apresentam como coisa nova. A voz de Natalie recorda-me Stevie Nicks dos Fleetwood Mac, e Joni Mitchell; e na segunda metade há travo de Enya e Lana del Rey. Mas a ambição e a estética do álbum estão mais próximas de artistas como Kate Bush ou Julia Holter; a propósito desta última, imaginem um Aviary menos experimental e mais conciso. Titanic Rising não está distante disso.
O coração do álbum, o cerne, o momento mais incontornável e bonito desta misteriosa subida à tona do Titanic, acontece precisamente no centro, em “Movies”. O arpeggio electrónico inicial vai-se perdendo numa atmosfera progressivamente etérea, acompanhado de um baixo poderoso que convoca harmonias arrepiantes. A voz de Natalie parece mais assombrada. Mas eis que subitamente surge a orquestra, e logo depois uma percussão intensa; e se tivéssemos de pescar um momento que efectivamente represente a subida deste navio afundado, é o da emocionante progressão daquelas três notas, que Natalie promete e entrega ao ouvinte; generosa, fá-lo por duas vezes. Ainda não houve nenhuma vez que tivesse ouvido essa sequência e não me tivesse arrepiado. Dá-me a sensação que a música existe para estes momentos.
A propulsão louca do final de “Everyday” que dá vontade que se prolongue por ainda mais tempo. O cravo que acompanha a resolução etérea de “Something to Believe”. As flautas em “Mirror Forever” a anularem a gravidade no espaço da canção. A progressão e resolução de “Wild Time”, já quase a fechar o conjunto; e que, em termos harmónicos, é talvez a que mais me impacta (repare-se naquela mudança de acorde que surge espaçada ao longo da canção, e que se destaca na sequência instrumental). Titanic Rising está repleto de pormenores e passagens ricas – mas, igualmente importante, tem um sabor a todo, a inteiro; é uma proposta coesa e diversa, um hino. De tempos a tempos lá surge uma obra assim. Proposta: vamos juntar este navio ressuscitado ao cânone do que não queremos deixar de ouvir, e do que não queremos esquecer.