Tristany sobre Meia Riba Kalxa: “É uma obra atmosférica das pessoas que vivem na linha de Sintra”

por Miguel de Almeida Santos,    15 Junho, 2020
Tristany sobre Meia Riba Kalxa: “É uma obra atmosférica das pessoas que vivem na linha de Sintra”
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No final da chamada telefónica com Tristany e a discutir o lançamento do seu álbum de estreia, Meia Riba Kalxa, entre risos e descontracção, João Pascoal só tem um desejo: “Espero que gostes e que faças a tua própria interpretação, que sejas também autor ali. Aquela hora e vinte e dois são cinco anos da minha vida”. Parece uma tarefa árdua encapsular cinco anos de experiências e vivências em menos de 90 minutos. Mas o jovem artista de Mem Martins tem vindo a mostrar que está definitivamente à altura.

O que salta à vista nos singles que tem vindo a lançar é a sua complexidade. Na sua música ouvimos barras e raízes no hip hop, mas o canto nunca está longe, e a junção entre os dois ou a altura para cada um é cuidadosamente planeada e adequada ao momento. Os instrumentais expansivos bebem de vários géneros e a sua construção revela uma atenção ao detalhe e às várias fases de uma canção. A discutir a progressão estruturada de músicas como “Rapepaz” ou a mais recente “Aclicas”, Tristany diz que “é à base da noção de vida, são os ritmos, tentei ver as coisas de uma maneira do quotidiano normal, com os bugs e delays da nossa vida”.

Realmente há algo de muito vivo na sua música. É atmosférica e pessoal, populada por personagens da vida de Tristany descritas com uma singular teatralidade. E, ainda que seja singular, é um esforço colectivo. Seja através dos videoclipes cinemáticos que tem vindo a apresentar — frutos da colaboração com Diogo Carvalho e Onun Trigueiros — e que transpõem fielmente a energia das colunas para o ecrã, ou através da partilha da mesa de produção com Ariyouok ou lvin, a obra de Tristany é um esforço de família.

O álbum que lança agora é o culminar de todo esse trabalho de equipa. Mas, mais do que isso, é o culminar de um percurso de alguém com profundidade musical e hábil na progressão conceptual das suas canções. A Comunidade Cultura e Arte conversou com Tristany sobre o passado, o presente, e tentar descodificar as mensagens por trás deste projecto. 

Os teus primeiros passos na música foram com o grupo de hip hop Monte Real. O que é que esses anos te ensinaram?

As lições, as brincadeiras, o Isaac [António, amigo de infância] comprar um microfone, escrevermos músicas por Skype, os sonhos e dizer uns aos outros o que é que aprendemos. Era a altura do ego, tínhamos todos egos fortes, era muito o “eu sei mais que tu”, aquela competitividade que nos fez crescer, mas infelizmente quase todos emigraram. Nunca tivemos tempo para termos tempo, sem pensar “tu vais-te embora amanhã”. Por isso é que também segui o percurso a solo. Neste momento sou o único dos que canta a viver em Portugal.

Tristany / DR

E de onde é que surgiu esta ideia de explorares mais o alcance da tua voz?

Acho que já existia bastante, por causa do meu pai, que é músico e é a minha referência, musicalmente é o meu grande ídolo. Ele nunca me dizia “não faças isso”, dizia “porque é que não fazes antes assim?”, e sempre vi nele uma grande liberdade para fazer o que queria na música dele. Isso inspirou-me e deu-me a capacidade de fazer o que me apetecia. Mas foi mais difícil no registo da rua do que no registo de casa. Foi de difícil compreensão até os rapazes e a zona em si perceberem aquilo que eu estava a fazer. Não se pode condenar, os gostos são diferentes. Sinto que é uma eterna demonstração. Por muito que às vezes seja o estilo ou não, as pessoas têm a noção do que é que está a ser dito e respeitam isso, e começam a levar-me mais a sério. Acho que [agora] é muito mais legítimo, confiam muito mais, e já não há tantas dúvidas.

Como é que foi o processo de construção de Meia Riba Kalxa?

O início foi há cerca de cinco anos atrás, comecei a escrever algumas das letras e a fazer alguns instrumentais. Há três anos estava a fazer um estágio de design gráfico e era uma altura em que estava em contacto com várias pessoas que também estavam a acabar o 12.º, tanto na António Arroio como na Secundária de Mem Martins. Não estavam obrigatoriamente a estudar arte, mas era people que se reunia para ouvir e discutir música. E estava numa altura de experimentação, de conhecer pessoas novas a toda a hora, de fazer freestyles em todos os sítios, madrugadas em todos os sítios. E foi aí que comecei a perceber que ou me focava numa coisa e tentava dar rumo ou então ia estar a procrastinar para sempre, a inventar desculpas para não fazer alguma coisa.

Isso mostra que foi um longo processo de construção. Tu achas que isso foi porque tu estavas a tentar encontrar o rumo certo ou foi mais uma questão de aprimorares e melhorares o material que já tinhas?

Era uma questão de budget. Não é que o dinheiro seja tudo, mas eu sinto que se não tivesse essa questão também não tinha aprendido tanta coisa no processo, não me tinha feito ir estudar, ir à procura, esse tempo foi importante.

Tristany / DR

Qual é a mensagem por trás do título do álbum?

A meia riba kalxa era algo algo que era identificativo quando eu era criança e entrei para o básico: de repente aquilo era uma mini sociedade. A primária não me dava essa proporção, não havia uma hierarquia, uma vida social tão grande assim, o impacto visual não era tão grande, ou tão meu, talvez seja essa a palavra. E puxar a meia riba kalxa era tipo “puxa, vais ficar mais bonito”, mas ao mesmo tempo lembro-me que as pessoas mais velhas olhavam para nós de uma certa maneira, “olha para estes miúdos, para estes pirralhos, para estes chunguinhas”, fazia-me confusão o porquê de uma cena que eu achava bonita fazer confusão a outras pessoas. E depois da minha vida de criança e adolescente e com a passagem para jovem adulto, começo-me a aperceber que por muitas modas que haja e por muitas gerações que passem, há algo que se está a perpetuar que inicialmente começou por ser romântico — esta beleza que eu construí para disfarçar algo que é feio. Acabei por começar de uma maneira e aos poucos foi-se transformando consoante a consciência que fui adquirindo. Sinto que este projecto é uma transformação de nós, não é só uma obra minha, é também das pessoas que estão a trabalhar nela, e que trabalharam. É uma obra atmosférica das pessoas que vivem aqui, na periferia de Lisboa, na linha de Sintra. As coisas que se passavam desde a minha infância até agora só mudaram no nome das pessoas e nas modas, hoje em dia já não se usa meia riba kalxa. Era uma coisa que chocava, que interferia, que incomodava, e por outro lado era uma cena que identificava. O irmão do Isaac fazia parte de um grupo de rap da nossa zona, os Young Thugz. Nós crescemos a vê-los a ter o seu lifestyle, e eu revejo neles a cena do meia riba kalxa, na maneira como eles se vestiam, aquilo que eles mostravam. A sensação de poder, de prosperar, a sensação de fresh. E esses gestos continuam a ser perpetuados actualmente noutras atitudes e noutras linguagens corporais. E eu sinto que essa altura que eu vivi não foi relatada. É defender algo que pode não ter sido defendido. 

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