Um cheirinho a Robespierre

por Mariano Alejandro Ribeiro,    11 Junho, 2020
Um cheirinho a Robespierre
Estátua de Napoleão I derrubada pela Comuna de Paris, em 1871
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O Terror, nome pelo qual ficou conhecido o período que se seguiu à Revolução Francesa, ficou marcado pelas execuções na famosa guilhotina. Este artefacto serviu para eliminar os ditos “inimigos da Revolução” mas, em questão de meses, a procura por justiça transformou-se numa caça a quem se opusesse aos princípios dos mais radicais dos revolucionários. Não acabou bem, isso já se sabe. Os moralismos exacerbados tendem a cair em execuções precipitadas. Sobram na história exemplos disso.

Os protestos contra o racismo, que tiveram início nos primeiros dias de Junho, em Minneapolis, devido ao injusto assassinato de George Floyd em mãos de um polícia, e que por esta altura percorrem o mundo, encontraram um novo adversário nas representações em pedra ou metal de líderes, conhecidos por serem racistas ou esclavagistas. Pelas justiçosas mãos do povo, e pela pressão exercida aos governantes de algumas localidades, têm-se destruído e desfigurado estátuas com valor histórico e artístico.

O movimento antirracista luta contra os 500 anos de injustiça sistémica e racismo estrutural, manifesta-se contra o perpétuo boicote feito a toda uma etnia durante séculos. Apenas a insurreição poderá alcançar o que os manifestantes procuram, isso é certo. A fúria entende-se, e entende-se a fúria e a rebeldia como propulsores do progresso civilizacional. Mas a atividade bárbara de deitar abaixo peças de arte marca um precedente aterrador. Se removêssemos representações de figuras históricas pelos padrões morais dos dias que correm, da Antiguidade para cá não ficaria uma única estátua em pé.

Os símbolos são elementos fluídos. Aquilo que representam muda com as eras e com as vontades do ser humano. É uma opinião que pode condenar à inescapável qualificação de racista ou intolerante, mas detonar estátuas não limpará a consciência de ninguém. É um comportamento que está perigosamente perto de ocultar verdades, de queimar livros, um comportamento que desvirtua uma luta justa e necessária.

Os iconoclastas do nosso século encontram nestas estátuas o horror da civilização humana e, como quem descobre uma borbulha na face diante do espelho, enterram-lhe os dedos até as fazerem desaparecer, sem considerar a ferida que poderá ficar lá. São poucos os casos de representações que merecem, sob qualquer pretexto, desaparecer do espaço público. Mas ainda que existam, como é o caso de Leopoldo II, inominável genocida belga, as estátuas possuem um valor histórico e artístico, e mesmo sendo retiradas da rua devem permanecer íntegras, pois fazem parte do património da humanidade.

A dor causada pelos impérios europeus e pelo sistema económico americano sobre o povo negro é a maior atrocidade da história do ocidente. Uma ferida com mais de quinhentos anos que pode muito bem ser impossível de cicatrizar. Por esse motivo, é mais importante do que nunca que trabalhemos para procurar sistemas mais justos, para procurar equidade e oportunidades para todos. Fingir que o passado não aconteceu, tentar apagar o que já foi feito, não é solução. A solução jaz em educar, em controlar as corporações que continuam a oprimir povos em todo o mundo, em desenvolver em conjunto medidas que contribuam para o bem-estar da comunidade, para garantir que não se voltem a erguer Leopoldos II, nem de bronze, nem de carne e osso.

Durante o curto período do Terror, os Revolucionários prenderam, numa França que se despia da monarquia, mais de 300 mil suspeitos. Desses, 17 mil foram executados, 10 mil morreram na prisão sem julgamento. A causa era correcta, mas pelo caminho, ceifaram-se as vidas dos moderados, das feministas, de abolicionistas, cientistas e comunidades religiosas, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A insurreição marca o caminho do progresso, certo, mas a justiça não pode estar nas mãos do impulso cego.

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