Um guardanapo de Milão
Neste período de quarentena, em que nos vemos obrigados a parar fisicamente, não há limites para onde a nossa mente nos pode levar. Olhando à volta do meu quarto, vejo objectos trazidos de viagens que fiz no passado e que, instantaneamente, espoletam memórias das mesmas. É uma forma de escapismo momentâneo que traz algum conforto em tempos incertos. Deixem-me levar-vos numa viagem à volta do meu quarto.
O quarto objecto é um guardanapo que trouxe do Bar Luce, localizado em Milão. Entre comer massa, visitar monumentos e rever amigos, a ida à cidade italiana justificou um passeio até ao café desenhado pelo realizador Wes Anderson, conhecido pela sua estética minuciosa e impressionante.
Há uns anos, pouco depois de ter visto o filme “Grand Budapest Hotel” e de ter ficado ainda mais enamorado pela cenografia dos filmes de Wes Anderson, deparei-me com a notícia de que o realizador havia feito o design de um bar em Milão, a abrir em breve. Na altura ainda não viajava frequentemente, nomeadamente por motivos económicos, e o meu entusiasmo inicial foi logo refreado pela ideia de que o mundo simplesmente teria algo novo fora do meu alcance.
Desde cedo que estava habituado a ver estas coisas que me interessavam a acontecer no mundo como se estivesse atrás de um vidro inultrapassável. Tecnicamente, poderia chamar a esse vidro o ecrã do meu computador. Tendo vivido no interior de Portugal durante 16 anos, fisicamente afastado dos centros de cultura nacionais — quanto mais dos internacionais —, era uma sensação familiar saber que as coisas aconteciam, pensar “olha que bom” e proceder para a seguinte notícia.
No entanto, menos de um ano depois, lá estava eu a visitar amigas em Erasmus na cidade italiana. Com quatro dias em Milão, um dos planos teria de ser visitar o afamado bar, localizado na Fondazione Prada. Ligeiramente afastada do centro e perto da estação de comboios da Porta Romana, a fundação tem a disposição adoptada de uma destilaria antiga, com edifícios novos projectados pela firma de arquitectura OMA, liderada por Rem Koolhaas — arquitecto da Casa da Música, no Porto.
Senti-me um intruso no mundo da alta costura, juntamente com o meu grupo de amigas e os nossos casacos de inverno, mais práticos que estilosos, mas importantes para combater o frio de rachar que se sentia em Fevereiro. Depois de admirarmos o edifício dourado que se opunha ao Bar Luce, o destino esperado, entrámos, cheios de confiança.
Era realmente aquilo que tinha imaginado: papel de parede rosa pastel, o chão reluzente pintalgado a lembrar granito rosado, bancadas e bancos de um verde perfeito para contrastar com o rosa, e os produtos e móveis milimetricamente dispostos. No entanto, ao contrário dos filmes de Wes Anderson, não há uma simetria ou ângulo perfeitos — neste caso, a arte não imita a vida. Ainda assim, senti-me mais numa exposição do que num bar, especialmente quando me detive na jukebox recheada de canções italianas dos anos 50 e 60, e nas máquinas de pinball baseadas em “The Life Aquatic” e na curta-metragem de 2013, “Castello Cavalcanti”, obras do realizador.
Com os preços bem fora do orçamento do grupo, tomei como responsabilidade minha fazer um pedido mais considerável, já que fui o instigador da visita ao bar. Pedi o café americano mais delicioso que alguma vez provei e uma pequenina crostatta de amora e mirtilo, que até deu pena comer. Na altura, só não chorei os 6 euros que paguei porque finalmente me sentia do outro lado do vidro, aquele onde acontecem as coisas que sempre queria fazer.
No fundo da crostatta, ficou um guardanapo aveludado com o logótipo do bar em tom rosa leve, disposto de forma pouco simétrica e, por isso, ainda mais adorável. Sacudi o açúcar em pó e pu-lo no bolso de forma criteriosa, para não o amachucar, como se de uma personagem de um filme do Wes Anderson me tratasse. De volta ao meu quarto, afixei-o num quadro de cortiça, para não me esquecer de que as coisas nem sempre estão assim tão longe como imaginamos.