Um Papa pode ser progressista?

por João Moreira da Silva,    8 Agosto, 2023
Um Papa pode ser progressista?
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Terminadas as Jornadas Mundiais da Juventude, cabe desmistificar um dos mitos mais repetidos ao longo da últimas semanas. Entre artigos de opinião, notícias ou tweets, muito se proclamou que Papa Francisco, ao contrário dos seus antecessores conservadores, é um Papa progressista (talvez até de esquerda!) que quer abrir a Igreja Católica aos valores do século XXI. Há um fundo de verdade nestas proclamações: na sua visita a Lisboa, por exemplo, o Papa afirmou que as pessoas trans também são “filhas de Deus” e que as “ama como são”. Há uns meses, Bergoglio afirmava também, contra a vontade de muitos opositores dentro da Igreja, que ser homossexual não é um crime (apesar de posteriormente o considerar um pecado…). É por estas afirmações, que desafiam (moderadamente) alguns dos dogmas mais tradicionais da Igreja, que muitas figuras de esquerda o consideram um potencial aliado na luta contra as forças conservadoras. Discordo totalmente desta posição. Não nego que o Papa é, sem dúvida, um homem mais aberto que os outros papas e que uma significativa porção dos seus seguidores. No entanto, um Papa não pode ser um aliado da esquerda. Há cargos e instituições que, por defeito, nunca o poderão ser. O Pontificado é um exemplo perfeito de um cargo que é conservador por definição. Não podemos olhar apenas para o líder da Igreja Católica, mas para quem o rodeia, para quem o pode suceder no cargo, para a história da própria instituição e para o papel que esta tem tido na nossa sociedade.

“A Igreja Católica, representada pelo Papa, parte de ideias com as quais a Esquerda se pode rever e conviver — o amor ao próximo, a fraternidade, a luta contra um mundo materialista. Por isso é que deve haver lugar para pessoas religiosas dentro da esquerda. Devemos distinguir entre alianças formadas com católicos e alianças com a Igreja Católica — as primeiras podem fazer sentido, as outras não.”

Comecemos por analisar quem rodeia o Papa — ou, por outras palavras, quem manda e quem tem ambições de mandar na Igreja Católica. Conhecido por ser um Papa “liberal”, que aborda “novos” temas como as alterações climáticas e a comunidade LGBTQIA+, assim como temas tabu na Igreja como o divórcio e o papel das mulheres na instituição, Bergoglio pertence a uma fação que está longe de ser dominante no Vaticano e na Igreja em geral. Com os crescentes problemas de saúde do Papa, as forças conservadoras religiosas começam a movimentar-se em Roma para tomar de novo o papado, regressando a linhas ideológicas mais próximas à dos papas Benedito XVI ou João Paulo II. Como sabemos, a Igreja é palco dos mais aguerridos jogos políticos, longe de uma pureza que muitas vezes lhe é associada. Entre os principais candidatos à sua sucessão, contam-se cardeais conservadores como Péter Erdö, fiel seguidor de João Paulo II, ou Robert Sarah, um opositor do Papa Francisco que considera que a Igreja deve ter um papel fundamental em África onde poderá resistir à “decadência ocidental”. Esta decadência é, claro está, a famosa ideologia de género (que o progressista Papa Francisco considerou ser “a mais perigosa das colonizações mentais”, diga-se de passagem).

Mesmo se o Papa Francisco conseguir garantir a sucessão da sua linha ideológica, não nos podemos esquecer que estamos a falar da Igreja Católica. Uma instituição que é, por defeito, conservadora. Se é verdade que são introduzidos estes temas “atuais e jovens” pelo papado, tal é feito com um grande objetivo em mente: evangelizar. Evangelizar e salvar a Igreja Católica da sua previsível decadência, tentado aliar os dogmas milenares das escrituras com questões ambientais, de género e de sexualidade. No entanto, as contradições são por demais evidentes, quase dolorosas de assistir ao vivo. Como é que alguém leva a sério as reivindicações de igualdade de género do Papa e da Igreja após assistir à cerimónia das Jornadas Mundiais da Juventude no Parque Eduardo VII e contemplar uma maré de padres (homens) nas primeiras filas, com as mulheres a serem recambiadas para as suas posições secundárias? Como é que se concilia as doutrinas de amor ao próximo com os abusos sexuais de milhares de crianças? Como é que ignora o papel da Igreja Católica na criação de um mundo racista e desigual através da sua participação ativa na colonização europeia? Como é que se ignora que o Vaticano não é uma mera “instituição de fé” mas sim uma ultrapoderosa instituição política com um enorme império imobiliário? Não estou a descobrir a pólvora nem a fazer uma crítica particularmente nova à Igreja, mas a expor alguns pontos que me levam à minha conclusão: o Papa — alias, Um Papa, não pode ser um aliado da Esquerda.

“Apesar de, no passado, terem existido possibilidades para diálogos — vejamos, por exemplo, quando os movimentos de libertação africanos foram a Roma pedir o apoio do Papa contra a colonização portuguesa — a verdade é que colocar esta aliança na agenda é rejeitar o papel transformador que a esquerda propõe ter na sociedade.”

A Igreja Católica, representada pelo Papa, parte de ideias com as quais a Esquerda se pode rever e conviver — o amor ao próximo, a fraternidade, a luta contra um mundo materialista. Por isso é que deve haver lugar para pessoas religiosas dentro da esquerda. Devemos distinguir entre alianças formadas com católicos e alianças com a Igreja Católica — as primeiras podem fazer sentido, as outras não. A Igreja é uma instituição que, na sua prática, está radicalmente distante das ideias de uma esquerda progressista. O papel histórico da Igreja Católica tem incentivado ao conformismo com a pobreza, ao apaziguamento das massas através da criação de mitos religiosos, à manutenção de um status quo conservador que agora é obrigada a “abrir-se à atualidade” de forma contrariada. Isto é o absoluto contrário do que a Esquerda — pelo menos a esquerda em que me revejo — defende. Não encontraremos na Igreja e no Papa aliados para revolucionar e criar um mundo novo, porque esse mundo novo é incompatível com instituições conservadoras do Vaticano. Apesar de, no passado, terem existido possibilidades para diálogos — vejamos, por exemplo, quando os movimentos de libertação africanos foram a Roma pedir o apoio do Papa contra a colonização portuguesa — a verdade é que colocar esta aliança na agenda é rejeitar o papel transformador que a esquerda propõe ter na sociedade. A esquerda tem o papel de reinventar um novo mundo, livre de desigualdade e opressão — a Igreja Católica terá de se continuar a adaptar.

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