Uma aura chamada Mallu Magalhães iluminou o Coliseu e a cidade do Porto
Na chegada da temporada regelada à cidade do Porto, o dia 27 de outubro de 2018 contou com uma aparição angelical, que terminou, no Coliseu do Porto, o roteiro que a levou à divulgação do seu novo conjunto de melodias etéreas. Depois de uma passagem por Lisboa, Mallu Magalhães terminou a sua tournée – Vem Tour, de promoção ao seu mais recente álbum, “Vem” – neste concerto, enlevando e enredando os seus espectadores para duas dimensões paralelas, mas em toda a linha complementares. Foram quase duas horas e meia em que se sentiu o cariz especial daquele momento, que encerrou um percurso de consolidação de uma das vozes mais jovialmente cativantes do Brasil.
A jovem Mallu atuou de várias formas neste concerto. Tanto contou com a sua banda, que lhe ofereceu uma pluralidade instrumental notável, como atuou a solo, num ambiente mais recatado, em acústico. O violão, a guitarra acústica e a guitarra elétrica foram os três meios de cordas preferenciais que a cantora usou para articular com uma voz que é, em muito, inspirada pelas grandes vozes do seu Brasil, embora sem perder a sua identidade. É uma voz que cresce na década em que estamos e cujo contexto se percebe, por mais que as tradições musicais da Bossa Nova e do samba lhe sirvam como um sorvedouro de inspiração. Uma voz que cruza essa herança aprofundada com o efeito dos tempos, que a leva a envolver-se pela pluralidade musical, que abrange os diferentes instrumentos e os percursos que conduzem a que cada música seja, por si só, um caso único.
Durante as duas horas e meia de música, nas quais o público conseguiu resgatar Mallu e o seu grupo para mais umas músicas por duas ocasiões, o repertório da cantora foi desdobrado, passando pelas suas origens e pela história tão bem contada a partir da Banda do Mar, que a lançou em projeção ainda mais sonante. Não bastando o seu talento a solo, também o seu grupo de músicos se destacou, entre eles o seu marido Marcelo Camelo, que, para além de ajudar na percussão, com as congas e outros instrumentos exóticos, também vestiu a pele de convidado e emprestou a voz num dueto emotivo e tocante em “Janta”. Também a bateria de Vítor Cabral, o baixo de Fabio Sá, a guitarra de Davi Bernardo, o piano e o violão de André Lima, o trompete, a flauta e a outra guitarra de Rodolfo Guilherme e o saxofone e a pandeireta de Cássio Ferreira completaram o discurso que se sentiu com maior amplitude à escala do som, embora se questione se seja a mesma da do coração. Isto perante a carinhosa passagem pela sessão em acústico, numa conversa bem mais estreita com o público.
Vestida toda de branco, Mallu encheu o palco com a sua presença angelical e pueril, preenchendo o Coliseu do Porto com uma aura transparente, que ainda revela uma menina nos seus jeitos e na própria comunicação com o público. Simples e tímida, transformava-se na expressão musical, dando a voz e os seus acordes à concretização máxima que se associa à música. As melhores músicas foram surgindo num “Vai e Vem”, navegando com o “Navegador” pela história das suas origens, levando-nos a “Guanabara” e a “Gigi”, dedicada à mãe. Do “Vem”, também visitamos o álbum “Pitanga”, no já terno “Sambinha Bom” e no sossego de “Olha só, Moreno” até se tornar “Velha e Louca”. Daí, fomos até 2008, ano do primeiro álbum de Mallu, por entre as suas composições em inglês. No seu momento mais intimista com o público, mostrou uma das suas inspirações principais numa adaptação meramente instrumental de Luíz Bonfá ao violão, para além de “Brigas, Nunca Mais”, esta da composição de Vinicius de Moraes e da interpretação de João Gilberto.
Com tempo para apresentar uma dócil música que preparou recentemente, e conforme já dito, Mallu Magalhães não esqueceu o legado de Banda do Mar, com “Mais Ninguém” a esquecer os “Muitos Chocolates” saboreados neste concerto. “Pode Ser” não fez o dia clarear, mas ajudou a que a noite se tornasse mais aconchegante, mesmo com o frio que fazia nas redondezas. A cantora vem construindo uma identidade firme, assente em influências vindas da “Bossa” e da Música Popular Brasileira (MPB), e que vem conquistando os portugueses, que, no Porto, se fizeram sentir no conforto que Mallu, no seu espírito de garça, à imagem da que esteve como pano de fundo do concerto, soube proporcionar. Um conforto que conseguiu fazer sorrir, emocionar, rir e derreter ao som e na presença de alguém que, mesmo implicitamente, não esquece as que partiram, como Elis Regina, Nana Caymmi ou Nara Leão. Um conforto que reforça a aura angelical que fez, na salva de palmas final, o Coliseu ser um altar de erguidos embevecidos e convertidos.
Fotografias de: Daniel Dias