Uma experiência no LEFFEST ’21
Decorreu, entre os dias 10 e 21 de Novembro, o LEFFEST — Lisbon & Sintra Film Festival, que nos tem, há vários anos, habituado a cartazes de excelência. Foram doze dias de cinema, divididos em vários ciclos e temas: A Morte de Deus reuniu sete sessões sob “a ideia de Deus estar morto e a vida do mundo, a vida espiritual, em particular, continuar apesar disso”; houve uma Celebração da Cultura Rom, com vários filmes e conversas; ciclos de retrospectiva sobre realizadores, e estreias, em solo nacional, de filmes que percorrem o circuito internacional de festivais. A oferta foi ampla, e eclética — e quase impossível de documentar integralmente — com sessões em Lisboa e Sintra, entre os 3 e os 8 euros.
Para o autor deste texto, os fins-de-semana representaram a melhor oportunidade para visitar o Nimas e experimentar toda a oferta. No Sábado, dia 13, às dez da manhã, celebraram-se As Bodas de Deus (1999), filme do incontornável João César Monteiro, numa escolha que surge integrada no ciclo A Morte de Deus. Dentro da carreira de César Monteiro, este filme termina a trilogia iniciada nas Recordações da Casa Amarela (1989), e que passa pel’A Comédia de Deus (1995); conta a história de João de Deus, personagem que atravessa os três filmes, que recebe uma mala cheia de dinheiro (em dólares!), e é livre de o gastar como bem entender. O curador do ciclo apresentou a escolha catalogando o filme por meio de vários adjectivos que associamos a César Monteiro (a ironia, o iconoclasmo, etc.), e o filme, legendado em inglês, prossegue no estilo característico que já lhe conhecemos. A sua obra é das mais singulares na nossa cultura, onde o artista se funde por completo com a personagem, e satisfaz-nos a possibilidade de a poder fruir no grande ecrã. No final da sessão, Paulo Branco (que produziu vários dos seus filmes, que gere a Leopardo Filmes, que é director do LEFFEST) subiu a palco para, em conversa com um dos curadores do ciclo, contextualizar e expor um pouco da sua íntima e intensa relação com César Monteiro e o seu cinema.
O ciclo continuaria na manhã seguinte, pelas onze horas, transladando-se de Portugal para o Brasil, no cinema de Glauber Rocha. Assistimos a um dos seus primeiros trabalhos, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), arrojada experiência inserida em estética western polvilhada de misticismo (parece nalguns momentos, mas precede, Alejandro Jodorowsky!), que infelizmente peca pela falta de legendas — o som está algo datado, e parte do diálogo perde-se à distância dos quase cinquenta anos que fazemos do filme — mas fica a impressão das suas imagens fortes, em permanente diálogo com os símbolos religiosos que motivam a narrativa. Mais tarde, esse ciclo passaria por outras partes do globo.
Num dos horários nobres do festival — Sábado à noite, dia 13 — o LEFFEST acolheu a estreia nacional de Onoda, 10 000 nuits dans la jungle (2021), curiosíssimo filme do francês Arthur Harari, que foi produzido em mais de cinco países. Adapta a verídica história do soldado japonês Onoda, que, isolado da frente de batalha da Segunda Guerra Mundial, acaba por permanecer nas Filipinas até à década de 70, alheio à realidade do mundo e, claro, ao fim da guerra. São três horas de filme que documentam a passagem do tempo (décadas!), que é aventura e jornada interior, numa gigante produção (em filme digital) que traz à mente o universo fel de Apocalypse Now (1979), e poderá almejar, dentro de alguns anos, a entrar no cânone dos grandes filmes de guerra.
Mais tarde, nesse dia, chegou um dos grandes momentos desta edição do LEFFEST, inserido num ciclo dedicado ao realizador japonês contemporâneo Ryusuke Hamaguchi. Drive My Car (2021) é baseado numa série de curtas histórias de Haruki Murakami, posteriormente coligidas na narrativa que dá forma ao filme, que mostra a vida de um encenador que lida com a morte da sua companheira; dois anos após esse sucedido (transição assinalada, formalmente, por um prelúdio cinematográfico elegantíssimo) é convidado a encenar O Tio Vânia, de Tchékov. O filme navega esse período da sua vida, utilizando o teatro como pano de fundo e objecto de estudo — nesse sentido faz lembrar outros filmes, como Opening Night (1977) de Cassavetes —, mas explora, em ritmo lento e quase meditativo, uma série de relações que se constroem a propósito da peça, entre actores que nem sequer partilham, entre si, a linguagem. A mais notável dá-se na companhia da jovem soturna que se encarregará de conduzir o seu carro; a inusitada motorista fá-lo de uma forma especial, com uma condução suave, e consciente; nesse carro, e durante essas viagens por vários pontos do Japão, o encenador produz mentalmente um exercício de memória sobre a peça, para mais tarde poder reflectir sobre a sua própria vida. Drive My Car é um filme muito bem conseguido de um realizador a seguir, e é mais um adaptação levada a cabo com (assinalável) sucesso sobre a produção de um autor, Murakami, cuja influência no mundo ocidental e no cinema há muito ultrapassa o universo da literatura.
Com pena, não visitámos certos acontecimentos: a Celebração da Cultura Rom trouxe várias sessões, conversas e concertos, e até uma sessão de The Kid, de Chaplin, ou três trabalhos de Leonor Teles, com a presença da realizadora; Henrique Pina mostrou três filmes, intersectando cinema, arquitectura e dança; celebrou-se, também, a filmografia de Jane Campion. Dos filmes a concurso, vimos apenas dois — o supramencionado Onoda, e um ainda por mencionar.
Já tinha conhecimento do cinema do iraniano Asghar Farhadi, mas de pouco ou nada me recordo antes do começo de A Hero (2021). Apresenta-se com um Grand Prix atribuído ex aequo este ano em Cannes, e vem com a chancela Amazon Prime — seja lá o que isso for; parece ter sido tudo filmado no seu país Natal. A trama é simples e surge a propósito de um saco de moedas de ouro, que é recuperado pelo protagonista Rabih, mas as moedas são valiosas o suficiente para pagar a sua dívida, ou parte da dívida, que ele contraiu. Segue-se uma sequência de encontros e peripécias em torno desse valor, um estudo moral que incide tanto na dimensão familiar como na escala macro de toda uma nação, e tudo acontece à luz de um humor mordaz, mas desarmante: Farhadi equilibra o rocambolesco com o absolutamente trágico em cenas onde as redes sociais são protagonistas, e o smartphone se comporta como um actor. A alguns faz lembrar o seminal Ladri di biciclette (1948), de Vittorio De Sica, mas o absurdo da situação, sempre em conflito entre a verdade e a mentira, intui algum do fascínio voyeurístico do Close-Up (1990) de Abbas Kiarostami.
O horário para o último filme do festival ficou entregue ao vencedor do prémio Melhor Filme LEFFEST; quis a sorte que caísse sobre A Night of Knowing Nothing (2021), da realizadora indiana Payal Kapadia. O filme inicia num plano a preto e branco duma sala, onde dançam, divertidos, vários jovens; é projectado, na parede oposta, o que parecem ser cenas de outros filmes, enquanto uma narração avança sobre memórias, lidas em cartas anónimas. A imagem, de trato analógico, crepita em junção com o som delicado, tingidas de cinzentos e sépia, vermelhos mais tarde, que em certas alturas parece enclausurar a nossa atenção em detalhes de uma história de amor. A partir dessa narrativa ficcional projecta-se uma voz que lê cartas sem resposta, e o filme evolui para nos mostrar também um ambiente circundante a esse romance: é aqui que a realidade irrompe filme adentro, apresentando-nos a Jawaharlal Nehru University, na Índia, e vários eventos que, nesse epicentro, abalam politicamente a comunidade estudantil e o país. É uma intenção extremamente política, entenda-se, enlevada nessa narrativa romântica, e sobressai um grito de urgência não só sobre a situação muito violenta que vive uma considerável fatia jovem do país, mas também sobre a importância do cinema como meio de expressão para uma comunidade, e para uma geração. É, formalmente, uma proposta muito interessante — o filme ataca três ou quatro histórias em paralelo, e somos levados nesse encadeamento — mas é difícil evitar a angústia de saber que há imagens reais, violentíssimas, que se integram no fenómeno global que é, afinal, a nova forma de comunicarmos entre nós.
Foram, todas estas, sessões especiais — mas um fenómeno em particular merece menção à parte. Pathos Ethos Logos (2021), de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, é um filme (será apenas um?) que se apresenta em três sessões distintas, correspondendo a cada uma das palavras do título — a soma de todas as suas partes totaliza cerca de dez horas. Fui apenas à primeira destas sessões, numa sala quase cheia, que teve a apresentação de Luis Miguel Cintra e Dom Abade Bernardino da Costa. O filme propõe, na sua sinopse, um exercício multitemporal (decorrendo em 2017, 2028, e 2037) com uma série de personagens que se cruzam; e se isso já pressupunha uma narrativa não-linear, não será verdadeiramente de estranhar que não exista sempre, explicitamente, uma narrativa: há, digamos, interlúdios longos, visuais e auditivos, dedicados à palavra e à poesia, e são constantemente levantadas várias questões — o que acontece a Fabiana e ao seu companheiro? Quem toma conta de Rúben? Constrói-se uma espécie de tensão em torno das personagens, alavancada pela montagem errática, e resulta um filme que tenciona abarcar uma imensidão de temas. É ambicioso, e tenho pena de perder as duas partes seguintes — espero sinceramente que chegue à distribuição em breve.
Desta edição do LEFFEST, sai a certeza de haver, em Lisboa e em Sintra, um belíssimo festival que nos traz parte do circuito internacional actual, com uma curadoria de arquivo interessante e capaz de propor bons diálogos. Louva-se a presença de alguns realizadores após as projecções, e a amplitude das escolhas para projecção. Para o futuro, talvez se deva possibilidade de abrir alguns dos conteúdos — como certas conversas, como certos filmes — às plataformas online, para que uma tão rica iniciativa consiga ultrapassar o habitual centralismo lisboeta; por enquanto, saúda-se a iniciativa de, até dia 24 deste mês, exibir algumas das obras decisivas deste LEFFEST no Cinema NOS NorteShopping.