Uma juventude presa ao passado
Ao ler o mais recente volume da revista Electra, dedicado à juventude, confrontei-me com as seguintes palavras de António Guerreiro, seu editor, no texto Juventude, a eterna e a efémera:
“[A juventude] já não se define por um ideal, por uma concepção do mundo, como foi o caso da juventude do pós-guerra, até ao Maio de 68, mas por uma imagem. O ideal é algo a que se aspira e constitui uma política, determina uma acção e funda um estilo. A imagem, por sua vez, leva a um mimetismo passivo, consubstancial ao fenómeno da estetização da sociedade e às formas de sentir que lhe correspondem.”
Deixaram-me a pensar. Para alguém que, como eu, caminha na fronteira entre rejeitar qualquer tipo de generalização e rótulo e aceitar que, para tentar chegar a conclusões, mesmo com as limitações que daí advêm, se tem de agrupar as pessoas de alguma forma, uma comparação entre entidades tão abstractas e heterogéneas como “gerações” é sempre encarada com um certo cinismo. Que partilho eu com alguém, em Portugal, na França ou na Indonésia, nascido num raio de cinco ou dez anos de mim? É certo que dependemos das mesmas conjunturas mundiais, mas há tanto da nossa vida que se separa disso que a variabilidade dentro de uma geração é tão grande que encontraremos sempre exemplos para o que quisermos. Caramba, até o grupo de pessoas com quem mantenho laços de amizade é heterogéneo ao ponto de me parecer partilharmos, maioritariamente, apenas aquilo que faz de nós humanos.
Não deixa de ser inegável, no entanto, que todas estas categorias são parte do nosso discurso e das nossas concepções, e se eu considerar aqueles que à minha volta são considerados jovens e da minha geração, não tenho como refutar a ideia do António Guerreiro. Obviamente que conheço inúmeros exemplos de jovens mobilizados e é com alegria que vejo o crescimento da sensibilidade face ao problema ambiental (que é hoje inegavelmente maior nos sectores jovens que nos mais velhos), mas não me parece haver, efectivamente, nenhum ideal na grande maioria da juventude actual.
Tê-lo-á existido, nessa dita juventude do pós-guerra, fora da elite intelectual? Não sei, mas a verdade é que parecia, nessa época, haver uma ideia de futuro. Para o bem e para o mal, havia uma crença no desenvolvimento infinito, num diminuir da desigualdade e numa mobilidade social assente numa dita meritocracia. Se trabalhássemos o suficiente, chegaríamos onde quiséssemos. O nosso (in)sucesso era apenas fruto do nosso trabalho. Rapidamente se veio a perceber que, no modelo em que assenta a nossa sociedade, tal não é inteiramente verdade. E quando a desesperança é tanta que se encara o futuro enquanto perpetuação do estado actual (ou pior), chega a desresponsabilização. Resignados à inevitabilidade da desilusão, larga-se o ideal em troca da ausência de significado. Já que, afinal, não é possível ter a estabilidade e o caminho rumo ao futuro que nos fora prometido, então ao menos que nos deixem em paz, sem responsabilidades, livres de fazermos o que quisermos. Deixem-nos, portanto, voltar a ser adolescentes. Propaga-se, assim, uma nostalgia por um tempo onde era possível não pesar as consequências daquilo que fazíamos (e explorar o mundo com os olhos de quem ainda tem tudo aberto à sua frente), aquilo que continuamos a ambicionar quando, por exemplo, regamos a noite a álcool e com ele desculpamos certos comportamentos.
Fica a nostalgia por uma imagem, imóvel, sem acção. Porque não há nada de político e de mobilização nesse tempo passado, e tentamos prolonga-lo não colocando nenhuma acção no tempo presente. Porque, de facto, de que serve crescer se não se vê qualquer vantagem naquilo que crescer nos possa trazer? Com a maturidade vem a responsabilidade, e com a responsabilidade vem o propósito. Não ter propósito só faz querer regressar a um tempo no qual esse propósito está ausente. Um tempo onde não temos de assumir a responsabilidade de pensar a sociedade que nos rodeia, apenas usufruir do que a sorte nos for trazendo. Porque ter uma opinião política é agir e ser responsável por ela.
Mas é importante perceber que a perpetuação do estado das coisas não é inevitável e que há algo a procurar, no futuro, que não existia nesse passado adolescente. Para o bem e para o mal, o futuro depende de nós, jovens. Até podem ter sido os que já cá estavam a criar as condições para os problemas com que nos debatemos ou vamos ter de debater, mas persistir em divergir a responsabilidade e em distanciarmo-nos do problema é continuar a dar a esses a legitimidade para manter tudo igual. A ausência de responsabilidades não existe, porque também a imobilidade e o alheamento têm consequências. Resta saber se preferimos ser responsáveis por agir ou por estar quietos.
A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).