“Venom”, tão mau que é bom?
Mais um filme da Marvel, mais um fenómeno de bilheteiras produto de um marketing sedutor que procura rentabilizar este fenómeno que tem sido presença assídua na indústria do cinema.
Curioso é que, ao contrário do que tem sido regra, “Venom” não tenha tido as belas reviews que a crítica norte-americana tem vindo a atribuir aos filmes da Marvel. Temendo estar a ferir ou provocar algum tipo de religião marveliana mais extremista, purista, perante a coerência narrativa dos filmes deste estúdio diante dos comics que lhe dão origem, e aparentemente implacável perante os seres exteriores, entre os quais me coloco, que não conhecem de forma profunda o lore e o canon destes super-heróis, ou anti-heróis, ou outro rótulo qualquer que lhes caiba, procurar-se-á, como sempre aliás, escrever a crítica mais objectiva possível para não ferir susceptibilidades.
Desta vez, no entanto, a tarefa está facilitada uma vez que, por alguma misteriosa razão, parece ser consensual que “Venom” não é um grande filme. De facto não o é. Espantosamente consegue, ainda assim, ter uma alma cinematográfica bem mais genuína que muitos dos seus pares fílmicos como “Spider-Man: Homecoming”, “Black Panther” ou “Deadpool”. Vejamos porquê… “Venom”, protagonizado por Tom Hardy, consensualmente um dos actores mais interessantes da sua geração, apresenta-se na sua primeira metade de forma pausada, construindo uma espécie de mistério body horror trash que até está bem conseguido enquanto entretenimento descomprometido, dando-se de barato os seus buracos narrativos. Ao finalmente surgir na tela, após enorme antecipação, Venom é um ser terrível e viscoso muito bem conseguido, logrando Ruben Fleischer, o realizador responsável por “Zombieland”, passar uma ideia de claustrofobia curiosa, esquizofrénica, que quiçá ainda mais viscoso e suado Tom Hardy consegue eficazmente incorporar enquanto Eddie Brock, um jornalista que tem como agenda desmascarar o presidente de uma das empresas mais poderosas do mundo e que se dedica à exploração espacial.
Essa primeira metade tem algum mérito, desviando-se, em termos muito abstractos, da tendência narrativa comum aos filmes da Marvel, lembrando mais o cinema trash chunga de Steven Seagal do que propriamente um filme de super-heróis de banda desenhada, e isso é belo. A meio, como que subitamente invadido por um qualquer parasita vindo do espaço, Venom (bicho e filme) muda de tom, muda de objectivos, muda de filme. A narrativa de romance quebrado entre Tom Hardy e Michelle Williams torna-se embaraçosa ao invés de ser apenas baratucha, e todo o argumento, que já estava orgulhosamente ciente dos seus buracos e fazia deles vantagem, vira queijo suíço, com uma série de acontecimentos e desenvolvimentos de personagem inexplicáveis, interpretações ridículas, one-liners memoráveis e um CGI tão espalhafatoso que custa ver. A plateia cerra os dentes perante o embaraço que desfila na tela, lembrando o inexplicavelmente mau “Snowman” com Fassbender, que apenas pode ser explicado por problemas na sala de edição e na produção. Ainda assim, tal vergonha alheia consegue reerguer-se dentro da sua mediocridade para ser uma mediocridade… francamente divertida, e aparentemente sem querer importar-se com as consequências dessa mediocridade.
Por que não podem todos os filmes da Marvel ser assim? Sem moralismos ou mensagens sociais, sem se levarem demasiado a sério, sem quererem mostrar o profundo drama de personagem que se eleva perante o estereótipo light do filme de super-heróis, tornando-o o que muitos julgarão ser um “filme a sério”? Todo o cinema é cinema “a sério”, um pior, outro melhor. Pelo menos “Venom” tem a humildade de saber aquilo que é, e mostra-o sem complexos de inferioridade.