“Vitalina Varela”, de Pedro Costa: em resistência contra a sombra

por Bruno Victorino,    12 Novembro, 2019
“Vitalina Varela”, de Pedro Costa: em resistência contra a sombra
“Vitalina Valera”, de Pedro Costa
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A obra cinematográfica de Pedro Costa sempre inspirou paralelismos com a pintura. Contemplam-se imagens projetadas na tela que se confundem com quadros renascentistas, autênticos chiaroscuros, onde se observa um vincado contraste entre a luz e a sombra. É verdade que os filmes do realizador português nunca foram propriamente luminosos (talvez com excepção de “Casa de Lava”), mas a escuridão que inunda as imagens de “Vitalina Varela” é avassaladora. Por diversos momentos, é impossível discernir os limites exteriores de cada plano, fundidos pelo breu que envolve as personagens, das quais emana a única luz presente no ecrã.

No novo filme do cineasta, a comparação com a pintura surge reforçada, pelos enquadramentos dos planos, em portas, janelas ou gradeamentos, concretizando a representação destas pessoas enquanto reis, deuses ou heróis. Simultaneamente, retrata o seu aprisionamento, a sonhos que nunca viram concretizados, na luta que estabelecem para manter alguma dignidade, perante as circunstâncias que a vida lhes impôs.

“Vitalina Valera”, de Pedro Costa

A história de Vitalina Varela, que conhecemos em “Cavalo Dinheiro”, surge-nos agora recontextualizada. Separados durante 3 décadas, entre Cabo Verde e Portugal, Vitalina chega a Lisboa 3 dias após o funeral do marido, Joaquim. Acompanhamos o luto da cabo-verdiana num país que pisa pela primeira vez. Refugia-se na casa do falecido marido, na Cova da Moura, da qual pouco sai durante parte considerável do filme. Debaixo da mágoa de Vitalina encontramos uma perturbadora camada de raiva e angústia, exacerbada pelos poéticos monólogos em crioulo, onde relata episódios da sua vida. Mas mais do que as palavras, é o olhar da cabo-verdiana que fica na retina, impetuoso e lacrimejante, que traz à superfície toda a tensão presa naquele corpo.

Progressivamente, Vitalina começa a sair da habitação, aventurando-se pelas imediações do bairro, atravessando canaviais, que, oniricamente, a transportam para outra realidade. Aí, encontra um pedaço de terra, que apropria como sua, uma horta como a que tinha em Cabo Verde, que descobre no meio dos subúrbios lisboetas. É nestas deambulações que nos cruzamos com Ventura, que se constitui como parceiro de Vitalina em cena, guiando-a pelo calvário que também atravessa. Ventura é agora padre, sem deixar de ser Ventura. A religião esteve sempre alheada da obra de Pedro Costa, e é algo que Vitalina traz consigo para o filme, incorporando-a no seu luto e fortalecendo o jogo que se estabelece entre a vida e a morte.

“Vitalina Valera”, de Pedro Costa

A confrontação dos demónios que assombram Vitalina, e o movimento no sentido de os ultrapassar, encontra o seu ápice numa das cenas mais arrebatadoras do filme. Em noite de tempestade, Vitalina sobe ao frágil telhado da sua nova casa, na tentativa de conter os efeitos da intempérie. Através de um plano estático, observamos a cabo-verdiana na sua contenda, reparando as telhas e o plástico que as cobre, resistindo ao vendaval que se instala e que a sonoplastia se encarrega de sublinhar. A conjugação desta mise-en-scène remete-nos para outro lugar, como se Vitalina estivesse a navegar numa caravela, em conturbados mares. Diogo Gomes descobriu a ilha de Santiago, em Cabo Verde, no século XV. Quando vemos Vitalina em cima do telhado é impossível não estabelecer a ligação. Uma inversão dos Descobrimentos. Duas personalidades que partiram da sua pátria em busca de um novo território. O feito de uma ficou eternizado através de uma estátua, em Cabo Verde. Pedro Costa faz questão de construir o seu equivalente em formato cinematográfico para Vitalina.

Conforme o final do filme se aproxima, as imagens começam a ganhar luz. No cemitério, no exterior da casa e de volta a Cabo Verde. Recorrendo a um flashback — incomum no cinema de Costa — regressamos a “Casa de Lava”, à casinha que Vitalina construiu com as suas próprias mãos. Este retorno ao solarengo Cabo Verde, que contrasta com o progressivo escurecimento da obra cinematográfica do realizador, encerra em si um prenúncio de fim de ciclo. Depois de Vanda e Ventura terminamos (será?) com Vitalina. Um retrato pessoal que atinge a universalidade. Das mulheres que sofrem, dos imigrantes que enfrentam dificuldades, das pessoas que vivem na margem de uma sociedade que as oprime, com a identidade dividida entre dois países, numa eterna resistência contra a sombra, contra as trevas, que o cineasta tão bem mimetiza nas suas imagens. Aguardemos então pela resposta que Pedro Costa dará no próximo capítulo, de uma obra que cada vez mais se junta aos grandes nomes da história do cinema português e mundial.

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